Playlist para um funeral



obra de Tatiana Clauzet

Realizar sonhos é bacana, mas não garante felicidade eterna. Aliás, a impermanência é um dos pilares da existência. Precisamos conviver com os picos e vales da alma, com a finitude biológica, definitiva, e também com as pequenas mortes diárias dos desejos e dos planos que fenecem pelo caminho.

Não tenho super expectativas em relação ao lançamento de “As Desventuras de uma mulher que levou um susto e sobreviveu”. Não creio que ele vai mudar minha rotina de forma significativa. Espero estar enganada, é claro, caso contrário não seria uma pisciana de juba. 


obra de Tatiana Clauzet

As peixinhas têm imaginação fértil e versátil. Adoraria me transformar numa escritora que lança um, dois, três, quatro almanaques da “vida como ela é”. Entretanto, a maturidade me resgata do delírio e informa que as projeções estão no terreno do onírico, ainda e sempre. Vou me equilibrando nesta slackline.

‘Nossa, tá na hora!’ Qual é mulher que não se desdobra em turnos e contraturnos, sempre na meia ponta da “pirueta pra cavar o ganha-pão”, a atenção dos filhos, dos bichos de estimação e dos amantes?

Porque mais do que concretizar projetos, o que produz serotonina, endorfina, ocitocina e outras ninas de bem-estar e alegria, é o tal tempo de qualidade que compartilhamos com quem se importa com a gente, com quem a gente se dá. Em outras palavras: “as horinhas de descuido” investidas nos relacionamentos afetivos. Garantia de rendimento a perder de vista. Grandes fortunas sem taxação e nenhum posto Ipiranga nos próximos mil quilômetros.


Dei uma volta danada para chegar ao ponto que faz jus ao título da crônica. Sentada na plateia para ver meu caçula tocar clarinete na banda da Musicalização Infanto-juvenil da Escola de Música de Brasília, percebi que não era a primeira vez que pensava na minha morte e nem seria a última. 

Cá estou escrevendo sobre esse meu samba de uma nota só (aliás, a garotada tocou um arranjo muito legal desse clássico do Jobim). Ladeada por pessoas amadas: meus mais novos-velhos amigos Rodrigo e Léo; Bruno, sobrinho e padrinho do clarinetista; a vó e sogra e o marido, me senti aquecida e acolhida.


Acompanhava os belos acordes de Hallelujah, do grande (e falecido) Leonard Cohen e tiquei a canção como uma das que deveriam estar na playlist do meu funeral. Peço um ritual menos fúnebre, por gentileza. Os cemitérios e velórios brasileiros são tão deprimentes. 

Nada como uma boa despedida ao estilo de Hollywood: poucas e significativas pessoas. Sem coroas de flores, please! Detesto. Buquês, sim; girassóis, sim; cravos, não. Comidinhas ao gosto da homenageada para confortar os queridos entristecidos após a cerimônia de cremação.


Queria ouvir lá de cima (sim, eu me vejo lá em cima, no céu dos anjinhos, e não no inferno dos diabinhos, pois sou muito calorenta) Stairway to Heaven, evidentemente. Aliás, quase tudo do Led Zeppelin pode ser tocado no meu funeral. Your Song, Rocketman, Daniel, Goodbye Yellow Brick Road, do Elton. Beatles: todas as mais melódicas como When my guitar gently weeps, Eleanor Rigby, Dear Prudence, Norwegian Wood, My Sweet Lord, perfeita para a ocasião, por sinal.

O som angelical e etéreo da harpa e também da cítara de Anoushka Shankar. E, como não, A Dança dos Espíritos Abençoados, no piano de Miguel Proença. Cat Stevens: tudo e principalmente Morning has broken.


Algumas do The Smiths (There is a light that never goes out tem tudo a ver, não acham?).Trenzinho do Caipira, As Quatro Estações do Vivaldi; um pouco da Caetano, do Beto Guedes, da Vanessa da Mata, da Bethânia, Calcanhoto… As minhas árias favoritas, devidamente enumeradas em outra crônica do livro. P.S.: incluam na lista Song to the Moon, da ópera Rusalka (não à toa, uma versão de A Pequena Sereia). É só fazer uma busca rápida, organizadores.


A apresentação artística do filhote terminou, minha divagação mórbida-musical também. Deixo tudo testamentado porque espero que o meu juízo final ainda leve umas cinco décadas. Até lá, se o esquecimento tomar a mim ou aos responsáveis pelos meus despojos, eis o texto aqui para lembrar.


Comentários

  1. Não dou muita conta de ler ouvindo música. Vim sem esse dote feminino. Mas juro que tentei.

    O promoter da sua despedida vai precisar de um DJ pra colocar toda essa trilha numa ordem que faça sentido.

    Tenho outro grande amigo que exigiu Starway to heaven na passagem dele.

    Eu pra minha não peço é nada. O problema vai ser de vocês que ficam. Façam como quiserem. =P

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  2. O comentário do Rodrigo é ótimo. Amei a trilha sonora. Mas não vou querer ouvir logo. Ainda há mtos textos pra ler por aqui. Ah, faltou falar do cardápio. Minha alma de promoter já se colocou a postos e ficou com essa dúvida. Beijos, Lu.

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  3. Nem vou me preocupar em guardar este texto. Tenho certeza que vou primeiro!

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  4. Essa questão eu já deixei alinhada com meus filhos, não quero ser enterrada, quero cremação e que espalhem minhas cinzas no mar, na montanha e por fim em uma cachoeira, não defini local exato, assim eles podem viajar para essas paisagens e decidem onde mais gostarem. Eu, realmente não consigo pensar em estar num caixão rodeada de flores, já me sinto pinicando toda....🤷 Qto a sua playlist adorei, quero cópia dela rsrsrs pode ser em pen drive ❤️

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  5. Querida Pisciana de Juba,
    Minha vida anda tão, tão desorganizadamente acelerada que só seus textos para alegrarem o coração e lembrar de respirar.
    Adorei a trilha sonora, mas prefiro que seja acompanhada por um bom vinho e acompanhada por risadas compartilhadas com quem fez a seleção, que, aliás, já tenho sentida como intima. Assim é o cronista, expositor íntimo de alma para os leitores.
    Nessa correria doida, tenho sentido falta de abrir minha'alma em letras mágicas e sentir o torpor que só quem escreve, entende.
    Esse abrir de alma faz o tempo parar e as asas abrirem em gargalhada de pirueta e não há sucesso ou pagamento monetário que se equipare a tão profundo prazer. Para além desse prazer, o escritor merece todos os louros e sucesso também, o que desejo com muito amor.

    De sua já amiga íntima,
    Thalynni

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