Mundéu






Ana Brisa e Maria Neblina eram gêmeas siamesas. Mentira, mas pareciam. Um só corpo e coração duplicado em exatidão. 

Ninguém sabia quando a brisa de uma dissipava a neblina da outra, além delas mesmas. Os pais foram, desde o nascimento, as cobaias preferidas das filhas, mestras nas artes da dissimulação e do disfarce. Quando tinham certeza de que era de Maria a travessura, na verdade era de Ana. Quando apostavam que Ana comera o bolo das visitas, de fato fora obra de Maria. 

Brisa e Neblina podiam até misturar seus braços, pernas, umbigos e madeixas, mas quanto aos desejos, cada uma maquinava à sua maneira. A primeira era leve, suave, diáfana de pensamentos encaracolados e reticentes. A outra, enevoada e densa. Trazia em si um véu intransponível, ainda que transparente. Por isso, de Maria só brotavam poemas concretos como pilastras. De Brisa, brincadeiras inventadas. Neblina era o pilar de Brisa. Brisa era o sonho de Neblina. 

Mas os pais não entendiam bulhufas das artimanhas das meninas. E se para eles era incompreensível, quem diria para os demais habitantes da cidadezinha de Mundéu. As meninas se fartavam de dar nó na cabeça de todos. Nas provas de matemática de Brisa, Maria encontrava todas as respostas. Nas provas de História de Neblina, Ana rabiscava todas as datas importantes. 

Neblina era árida; Brisa, úmida. Só que Ana gostava de paçoca e carne de sol. Maria preferia frango ensopado com pequi. E a mãe, quando queria agradar uma, acabava por afagar a outra. Elas se riam toda; os dentes à mostra, as barriguinhas chacoalhando. A mãe zangava, amuava, e creditava sua sina, vencida, aos desígnios de Deus. 

O pai nem se metia naquele jogo de adivinhação. Oxalá os cortes de cabelo diferissem, vestidos noutra cor. Nada. As meninas siamesas de alma faziam questão de manter a ilusão de ser uma o espelho da outra. Na superfície, idênticas. Na profundeza, diversas. Sempre a se retroalimentar das certezas de Maria e das dúvidas de Brisa. 

Juntas eram uma potência elevada a mais que duas. Separadas, o risco era a desintegração. Cientes sempre foram dessa fragilidade. Tanto é que no dia em que Brisa lépida caiu da árvore, Neblina também deu um jeito de quebrar o mesmo pé esquerdo, tropicando propositalmente no muro da escola. 

Acontece que o tempo, ninguém ludibria. Ana Brisa e Maria Neblina cresceram; cintalaram-se em plumagens paulatinamente distintas. Brisa delgada, longilínea e longínqua. Neblina encorpada, ancas e tornozelos sólidos.

O ventinho que começou a soprar de Brisa atiçou um cupido que passava por ali. A jovem enamorou-se e fugiu, aproveitando a única tempestade registrada naquela década. Maria Neblina, abatida, de vapor, virou granizo de pedra-sabão. Cristalizou-se e fincou raízes no solo duro da vida sertaneja. 

Até hoje, quem passa naquele que foi o vilarejo de Mundéu, abandonado por razão de uma praga de percevejos sem precedentes, vislumbra uma espécie de marco meio árvore, meio coluna greco-romana na erma vastidão. Enigmático ponto de partida de todos os redemoinhos. 

Comentários

  1. Maravilhoso Lu!!!!amei, este deve ser escolhido pro livro👏👏👏😍🙏

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  2. Ah esqueci, adorei a repaginada do blog...show!

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  3. Adorei a repaginada no BLOG! Está leve como a brisa! Adorei o texto para variar! Entender o que é ser gemeas, só para quem é e falo com propriedade! No dia que minha irmã operou das amígdalas eu cai e quebrei o braço! Ficamos internadas juntas!!!! Kkkkkkk O ser humano, geralmente, nasci e.morre só por isso seRgemeo traz algo muito diferente. Uma ligação sem igual! Parabéns por ser grande observadora do mundo, contadora de estórias e provocadora de reflexões! Sou sua fã!

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  4. Adorei a repaginada do blog e o conto. Leitura suave, deliciosa. Parabéns!

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  5. Querida Luciana,
    as suas "mensagens" estão com um formato novo!!
    Muito legal!

    Perdoe este seu amigo, ele é jurássico nessas questões.

    Quando se fala em Blog, facebook (onde eu até criei uma conta), eu me sinto navegando em um barco à vela, num mar sem-fim e revoltoso. Um outsider...

    Não sinto necessidade. Gosto dos meus e-mails.
    Cabe observar que eu já fui um (me auto-classifico como) grande escritor de cartas. De papel, claro, via Correios!!

    Santo Deus!!
    Dá até um pouco de agonia em pensar nisso...

    Hoje, pelo menos temos o WhatsApp, que permite uma comunicação hiper-rápida.
    Desse eu gosto, e uso, bastante.

    Beijo,

    Paulo Magno

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  6. Amei o novo leiaute do blog. Leve, agradável. Dá vontade de ficar nesse mar... E fiquei. Lendo os contos que perdi com a rotina. Bjs.

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  7. Gostei da repaginada e do texto!

    Walton

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  8. MARAVILHOSO!!!!! O blog está muito mais fresco e rejuvenescido, e o texto tem que ir para o prelo!!!!!!

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  9. Adoro a sua iniciativa de ser, Lulas.

    Você faz um excelente trabalho pessoal.
    Escrever alivia muito a alma. Há sete meses venho escrevendo quase todos os dias.
    Quase um diário pessoal, se não fizesse isso já estaria louca.

    Escrever ajuda organizar o pensamento!!!
    Ajuda a estruturar a alma... Melhora a performance do trabalho....Tudo de bom!!!

    Gosto muito de você,
    Beijos!

    Catarina França

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  10. Vc captou exatamente tuuuuudo... eu li e amei!! vc é uma escritora nata!!! escreve bem demais!!! fico tão orgulhosa de ser sua tia!!! PARABÉNS LU...VC É O MÁXIMO! tudo que vc escreve é lindo!!!😍👏👏👏👏

    Tia Book

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  11. Oi, Luciana. Que texto legal! Adorei! Gostei muito do seu blog também.
    Cheguei aqui no STJ, na Comunicação, faz um ano. Estou gostando. Muitos desafios, muita coisa para aprender.
    Obrigada!
    Abraço,
    Neblina.

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