Alegria em combustão










“O melhor do Brasil é o brasileiro”. Tenho sérias ressalvas em relação à afirmativa. Acredito que a premissa carece de autocrítica. Aliás, o brasileiro, em geral, tem escassez de visão de mundo e sempre se teve em alta conta, como se realmente fôssemos relevantes para o planeta. Não, não somos. Talvez a Amazônia seja. O Brasil também não é o país mais bonito do globo. Tem suas belezas incríveis, mas não é para tanto. Aliás, nem sei qual é o país mais bonito da galáxia, mas, com certeza, não é o Brasil. Eis outra falácia, outra mania de grandeza tupiniquim. Ser gigante em território nos deixou inflados e cegos para o relativismo da vida.

Mas não sejamos azedos num domingo pela manhã, apesar de imersos em mais uma crise absurda na nação sem noção. Faz um friozinho de outono-inverno supimpa lá fora e ontem, num lance de sorte e jogo rápido, consegui abastecer meu carro sem traumas.

Já havia decidido relevar a greve dos caminhoneiros e deixar as filas para segunda-feira. Ir a pé ou de bicicleta, pois vivo numa região privilegiada onde tudo é mais ou menos a 1, 2 kms de distância. Gosto de caminhar e pedalar, então fica mais fácil. Os filhos também estão acostumados a gastar sola de tênis e o mais velho já fez seu rito de iniciação no transporte público. A falta de combustível, portanto, não estava me enlouquecendo, ainda que tenha a consciência dos horrores de um país viciado em rodovias e carrões. 

Entretanto, casou de eu estar na hora certa no momento certo. Aquela lufada da sorte que decidi sorrir para você. Serendipity, como bem dizem os americanos. Segui o caminhão-tanque até o posto de combustível vizinho ao meu prédio. Acabei abastecendo o carro como sempre faço: perto de casa. E, de quebra, vivi na pele mais um momento histórico-limite do meu Brasil brasileiro.

Gosto disso. De participar ativamente, ainda que involuntariamente, da construção da História e de histórias. Era a terceira na fila para colocar 30 litros no tanque, o máximo permitido. Muito justo, por sinal. Aquele caminhãozão, as luzes ofuscantes do carro da PM. O Brasil passando por ali ao vivo, sem edições jornalísticas, embora eu seja uma e, talvez por isso, me interesse mais por captar os arredores. 

Os motoristas permaneciam sentados em seus carros. Desci e espiei. Havia uma mulher andando pra lá e pra cá conversando com as frentistas. Sim, eram duas meninas, as frentistas atarantadas. As bombas já estavam cobertas e a dupla resignada a esperar até às 11 da noite para voltar para casa, sabe-se lá como, correndo que perigos. Porém, eis que chega aquele caminhão-tanque rei e o cortejo de carros de passeio. O frenesi toma conta.

E a mulher com o capacete na cabeça, enérgica, descubro, é a motorista do caminhão. Ela sobe e desce da boleia, a frentista sobe no reservatório contendo 20 mil litros do precioso líquido que faz o mundo rodar. São mulheres as protagonistas da minha noite brasileira. Sinto orgulho delas. Porretas. 

Cristiane me diz que foi a primeira mulher a dirigir caminhão-tanque no Distrito Federal, há mais de vinte anos. “Meu caminhão era rosa, mas aí a Petrobrás proibiu porque tinha que padronizar”. Ela está brava, revoltada. Ela manda seu recado em voz alta: “quero ver quando tiver faltando arroz e feijão. Vocês vão comer gasolina, é? Se fosse por uma bandeira vocês estavam lá na frente do Congresso. Mas como é por nós, caminhoneiros, vocês não estão nem aí”. 

A caminhoneira é vaidosa, fez pose para o meu celular. “Você pensa que o dono de posto ganha dinheiro? Ele tira, no máximo, três centavos por litro. A nota fiscal já vem abocanhada lá da Petrobrás. E depois eles vendem gasolina a 80 centavos o litro para a Bolívia, enquanto a gente paga essa fortuna que você tá pagando aí”. 

Nayara e Kelly, as jovens frentistas vivendo o primeiro fato histórico de suas vidas, agindo com responsabilidade e seriedade em nome de seus patrões que, com certeza, lhe pagam uma miséria. Enquanto uma descobre as bombas, a outra testa os combustíveis. Nayara organiza a fila e deixa uma motorista gravidíssima abastecer antes. A PM pede que um dos carros saia para que o caminhão-tanque possa voltar para a distribuidora para, provavelmente, levar combustível a outro posto BR. 

Até que horas Cristiane deve ter dirigido? Nayara e Kelly foram dormir com a consciência de que são agentes da História? A história oral das formiguinhas que fazem toda a diferença? Só afirmo que passei uma hora e meia linda ontem. O motoqueiro e sua esposa, ela abraçadinha às costas dele, gente simples, uma vendedora da loja Blumenau da 302 sul e seu marido. Abasteceram antes de mim e seguiram para alguma periferia. Cristiane, orgulhosa de sua profissão, apesar dos pesares. “É a primeira vez que dirijo escoltada, tô me sentindo muito poderosa”. 

O destino me colocou no caminho desses brasileiros tão distantes de mim. E por isso não acredito em jornalistas sem histórias ou em escritores que “dão branco”. Tudo charminho desnecessário em busca de autopromoção. As narrativas existem em cada rosto, em cada gesto. Se eu posso contá-la, quem dirá alguém de maior envergadura intelectual. 

Aquelas pessoas anônimas de ontem deram algum sentido à frase “o melhor do Brasil é o brasileiro”. Não porque tenham sido maravilhosas, éticas, cidadãs, inteligentes ou qualquer outro adjetivo que nos orgulhe, porém pelo simples fato de carregarem consigo a marca da alegria.

Eis algo muito nobre que nos identifica como povo: a alegria de viver, o maior patrimônio verde-amarelo. E se técnica tivesse para ser obtida, deveria ser ensinada nas melhores universidades dos povos sem graça do hemisfério norte. 


Comentários

  1. Sortuda Lu, ainda não conseguimos abastecer...

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  2. Mais uma obra prima dessa minha querida amiga! Mais uma instigante cobertura dos fatos! Parabéns!!!!!!!!

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  3. Luciana, como é gostoso ler seu texto! Escreva aí um livro pra gente ir tietar.

    Karla

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  4. Adorei, como sempre.

    Adriana Capelloza

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  5. Lulas, não sei se vai gostar do que vou falar ...

    mas a crítica me parece de alguém que ainda está numa situação bastante confortável....

    Uma coisa é nossos filhos andar de ônibus ou coisa parecida por opção; outras são das pessoas que são jogadas para isso em situações bem mais amargas ...

    Texto muito bem escrito, mas carece de empatia com a situação real ...

    Não se chateie, mas a impressão é que estava neste domingo como cronista ... de alguém realmente que está numa posição bastante confortável.

    Participar da história do outro lado é que é o X ....

    Continuarei lendo os seus textos e participando. Melhor quem pensa e se expõe do que quem furta ao aprendizado.

    Catarina França

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  6. Oi, Lu. Não consegui publicar de novo. Acho que deve por causa do que você falou sobre o bloqueio dos computadores... Como sofro do mesmo mal que você em casa (falta de tempo e de computador rsrsrs), mando o comentário pra vc incluir lá no blog. Bj!
    Lu, ficou ressoando em mim a frase da motorista do caminhão tanque: “quero ver quando estiver faltando arroz e feijão...”. Lembrei das figuras enchendo os carrinhos nos supermercados (se a farinha tá pouca, meu pirão primeiro).
    Também vi umas coisas acontecendo pelos postos por onde passei esses dias, desde pessoas ajudando a empurrar o carro que pifou na fila do combustível até o espertinho que tentava furar a fila (que coragem, né não?). E em alguns momentos fiquei com a sensação de que nos falta disposição pra refletir sobre o que está acontecendo.
    É estranho correr pra encher o tanque do carro com a gasolina a cinco reais, como é estranho ver alguns enlouquecidos urrando pela intervenção militar.
    E você, como boa jornalista, sabe me dizer como filtrar esse escarcéu de informações que invadem nosso juízo? Tempos confusos, vou lhe dizer!
    Mas você tem razão quando aponta esses encontros como momentos de respiro no meio do tumulto. Faz bem à alma estar presente.

    Um abraço!

    Francis.

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  7. São as mulheres.... dominando o mundo!!

    E o que é que, nós, pobres homens, poderemos fazer a respeito?

    Tenso....

    Paulo Magno

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  8. Luciana, parabéns! Achei muito sensível esse texto sobre "mulheres brasileiras" e suas aventuras no posto de gasolina.

    Rúbia de Matos

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