Repouso no pouso






A luz oblíqua de maio, sol frio, tons acinzentados nas nuvens. O outono está sendo gentil e amoroso comigo. Me leva de volta ao apartamento da 18 Harmon street. Suas fartas janelas trazendo a claridade diáfana dos dias acima do trópico de câncer. 

Sinto saudades daqueles silêncios, daquela introspecção forçada, muitas das vezes, mas salutar de alguma maneira. Em algum ponto, mudei. Sou mais plena de mim. Foram semanas intermináveis de Frida, eu e a transparência das manhãs. 

Hoje sou mais solitária do que sempre fui, todavia, mais serena. Gosto de estar comigo mesma, ruminando futuras narrativas, tirando fotos, vendo séries em série, pedaços de filmes. Começo a me visualizar como uma ermitã soft, equilibrando recolhimento e festas familiares.

A varanda na qual me sentava para sentir frio faz parte desta aprendizagem. No verão, só era possível estar ali à noite. Mas os EUA são cancerianos de nascimento. Apreciam a tradição e o conforto do lar nos longos meses de friagem. Aprendi, portanto, na segunda temporada no hemisfério norte, a valorizar a permanência em repouso no pouso. 

Daquela sacadinha saquei tantas imagens que alimentarão minha alma pisciana, sedentas da afetividade feminina, para sempre. Era bom estar ali e ver meus filhos partirem para a escola. Saíamos Frida e eu, ainda que fosse gélido o ar matinal, para um monitoramento disfarçado de tchau.

Dali acompanhava a revoada de corvos na hora do ângelus, algo assombrosamente poético. E também a passagem diária dos “school buses”. Vários desciam a rua com seu barulho tão característico, levando e trazendo os meninos da experiência mais especial que tiveram e da qual não saberei nunca, jamais de seus pormenores (que pena, que inveja!).

Ah, como esquecer a primeira chuva branca caindo farta em frente aos meus olhos. Cresci numa casa sem janelas para o mundo lá fora. Aos 15 anos, escrevi um verso que exprimia “a vontade de ter uma janela para olhar a chuva”. E não é que se concretizou no apartamento da Harmon Street? Tinha seis janelas onipresentes + uma porta dupla envidraçada de cara para a varanda. A fartura de luminosidade e pontos de observação era a melhor característica daquele acampamento. Prato cheio para uma voyeur assumida.

Na varandinha, lixei unhas e li poemas. A sogra se sentava para fazer suas orações pela manhã, curtindo as baixas temperaturas raras no Centro-Oeste brasileiro. Ali, minha irmã mais velha saltitou emocionada ao sentir nas mãos sua inédita nevasca aos 60 anos.

Da rua, avistava Frida tristonha com a carinha no vão da cerca da varanda, pois sabia que seria deixada sozinha mais uma vez. E também ali ela se deitava em 30 centímetros de neve por mais de meia hora, como se estivesse acarinhada por um colchão de plumas. 

Rômulo pediu uma mesinha para almoçar fora. Convenci Bernardo a comprar. Sentadinho ao ar livre iniciou seu caso de amor com o clarinete, poliu pedras e fez estoques de cajados que encontrava pelas redondezas. 

Das janelas, avistei pessoas consertando telhados das casas vizinhas e admirava os esquilos equilibristas nos feios cabos de telefonia. Porém, seguir o sol se pôr sobre os arranha-céus de White Plains era possível, apenas e meio de esguelha, da ventana do quarto dos meninos. 

Entretanto, todas as fases da lua estavam à disposição na panorâmica varanda que também me mostrava as mazelas do prédio de moradias de baixo-custo bem em frente. Dia sim, dia não, havia ambulâncias ou carros de polícia. A vida dos negros e hispânicos dos Estados Unidos é intimamente ligada às nefastas sirenes. 

Foi lá de cima que assisti, estarrecida, uma briga feia entre jovens negros vindos da escola. Achei que um deles fosse morrer quando eu só conseguia gritar, em Português, para que deixassem daquilo. 

Aquele balcão era uma bênção. Podia checar Rômulo lá no parquinho quando escalava os brinquedos. E a chegada do icônico carrinho de sorvete americano, fazendo o moleque vir me gritar por uns dólares, que lançava ao chão. O guri saía correndo para a fila de crianças ávidas por um picolé Good Humor. 

As outras cinco sacadas do pequeno prédio viviam vazias, mudas. Provavelmente os vizinhos nos achavam malucos demais por inventar qualquer desculpa para estar ali, do lado de fora. Certamente nenhum outro inquilino amará e desfrutará daquela sacada como a família Zéprépré. 

Será que a vizinhança olha para aquele canto acima e relembra da maluca envolta num roupão de corações do Wal-Mart?





Comentários

  1. bom dia Lu...viajei junto...boas lembranças!bjs

    ResponderExcluir
  2. Lú, essa crônica foi linda em vários sentidos: a sensibilidade que te toca cada dia mais, a sutileza que lida com os sentimentos, a saudade suas de uma época que não volta, minhas saudades também, a constatação de tantas transformações que passou nessa temporada em NYC. Bem- vinda à maturidade, onde o nosso maior encontro é conosco mesmo, uma viagem interior que estou amando e acho que você vai gostar também.
    A fotografia não poderia ilustrar melhor esse texto, esse tempo na vida.

    ResponderExcluir
  3. Está saudosa amiga. Lindo texto!

    Cecília

    ResponderExcluir
  4. Lindo texto!

    Carmen Forte

    ResponderExcluir
  5. ô lindeza de coração cheio de quentinhos que ajudam a seguir em frente!

    ResponderExcluir
  6. Muito bom o texto!

    Paula Mello

    ResponderExcluir
  7. Nossa, esta varandinha era legal mesmo! Me lembro de ver dela o vizinho do prédio de tijolinho em frente sempre fazendo churrasco para família. Ali dava pra ver mesmo o encanto do verão de White Plains! Bom texto, irmã!!!

    Marisa Brasiliense de Assunção

    ResponderExcluir
  8. Que texto para ler logo cedo... Não sei se sorrio ou se choro, tamanha a beleza e a emoção que ele proporciona. Há muito que se aprender com a solitude (que me parece algo diferente da solidão triste...) e com as varandinhas. Quanto ao roupão, certamente será lembrado: foi um clássico na terra do Tio Sam!

    ResponderExcluir
  9. Querida Luciana,
    nessa mensagem, você expressou lembranças e saudades intensas do início do outono novaiorquino, do seu apartamento e da sacada.
    Fatos e observações que ali ocorreram.

    Muito legal.

    Beijo.

    ResponderExcluir
  10. Ah, minha amiga... como me encontro em suas palavras, seus versos, sua capacidade quase sobrenatural de penetrar na alma da gente. Senti o frio da neve, a solidão dos compridos invernos e o espanto curioso com as coisas mais simples.

    ResponderExcluir
  11. acabei de ler, com tanto prazer, um recorte do seu tempo da sacada da Harmon Street.
    Lindo demais!

    Márcia Godinho

    ResponderExcluir
  12. Cada vez mais encantada com o que vc escreve... Me vi nesses lugares com Frida na varanda. Afffe, lindo!!!!! Vc é demais!!! Até coruja te inspira! Kkkkkkk

    Ambrosina

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos