Relíquias subjetivas




Dentre as minhas obsessões encontra-se a memória. A afetiva, de preferência. O que se guarda, o que se conta, o que é revelado depois de tanto tempo. Fragmentos de você. Um momento único. Vergonhas, sonhos, confissões, cantos de olhos, covinhas, nucas, abraços, risadas, bombons. Fósseis, vestígios. Acho que sou uma paleontóloga de sentimentos, sempre pronta para escavar fundo no baú das lembranças, não só minhas; alheias-alhures também. 

Se meus bloquinhos de papel (ah, papel, te amo!) se rebelassem vomitando todos os rabiscos... Florezinhas, casinhas de campo, versos, frases soltas, números de telefone ocasionais, entrevistas à moda antiga, endereços, coraçõezinhos agrupados, datas, asteriscos... Páginas e páginas da história da minha vida contadas em garranchos. 

Quero chegar com a escovinha e tirar o pó, desnudar, descobrir os contornos. Narrar histórias por meio dos bilhetes amassados de amor em guardanapo. Dos papéis de balinha em nó de beijinho. Olás de viagem em cartões postais. Taí, deu-me ganas de montar uma exposição de cartões postais pendurados ao léu. De um lado a paisagem, do outro a escrita. Recuperar dos meus guardados todos que se lembraram de mim em momentos felizes de suas vidas e tiveram a gentileza de demonstrar. 

Numa outra parte da mostra, estamparia os cartões de dia das mães que consegui resgatar das gavetas insanas de Dona Maria. Espalhar pelas paredes as agendas da minha adolescência. Todas as inocentes crises de quem ainda não sabe nada da vida. Seria uma exibição instintiva, intuitiva. Minha linha do tempo contando também a existência de outras pessoas conectadas nessa trajetória. Como as músicas do Chico que batem mais forte. Duas. Que Chico político, que nada! As canções que mais me comovem gotejam lirismo, os pormenores do ser humano. 

Gosto desses cacarecos, dessas tralhas emocionais. Inútil sou, à moda de Manoel de Barros, ou mais melancólica como o próprio Buarque, outro obcecado por relíquias subjetivas deixadas dentro. E como ambos descrevem esse sentir muito melhor do que a indigente das palavras deste blog, concluo:

Eu te vejo sumir por aí/ Te avisei que a cidade era um vão/Dá tua mão, olha pra mim/Não faz assim, não vá lá, não/Os letreiros a te colorir/Embaraçam a minha visão/Eu te vi suspirar de aflição/E sair da sessão frouxa de rir/Já te vejo brincando gostando de ser/Tua sombra se multiplicar/Nos teus olhos também posso ver/As vitrines te vendo passar/Na galeria, cada clarão/É como um dia depois de outro dia/Abrindo um salão/Passas em exposição/Passas sem ver teu vigia/Catando a poesia/que entornas no chão...

Não se afobe, não que nada é pra já/O amor não tem pressa/Ele pode esperar em silêncio/Num fundo de armário/Na posta-restante/Milênios, milênios no ar.../E quem sabe, então, o Rio será alguma cidade submersa/Os escafandristas virão explorar sua casa/Seu quarto, suas coisas/Sua alma, desvãos.../Sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras/Fragmentos de cartas, poemas/Mentiras, retratos/Vestígios de estranha civilização/Não se afobe, não que nada é pra já/Amores serão sempre amáveis/Futuros amantes, quiçá se amarão sem saber, com o amor que eu um dia deixei pra você...

Comentários

  1. Que lindo, Lu! Pura poesia! Beijo,
    Claudia

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  2. Uau arrasou! Amo Chico, e vc escolheu duas lindas canções, dentre as que mais gosto...bjão.Namastê!
    Cynthia

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  3. Lu, gostei, sempre me surpreendo com você abraços a todos, beijos.
    Eni

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  4. Quando você fizer sua exposição podíamos - as amigas - te emprestar seus escritos pra nós também, que tal?

    Marisa

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    Respostas
    1. Seria ótimo!! Uma exposição megaegocêntrica de número 4, aMáda! KKKK!

      Lulupisces

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  5. Lu, gostei demais desse texto!

    "Gosto desses cacarecos, dessas tralhas emocionais. Inútil sou, à moda de Manoel de Barros, ou mais melancólica como o próprio Buarque, outro obcecado por relíquias subjetivas deixadas dentro." Fiz, recentemente, um quadro de 1mx1m cheio de relíquias subjetivas e o dependerei no corredor!! A roupa do Feijãozinho (boneco que eu adorava), o primeiro mergulho em Fernando de Noronha, um guardanapo de um café antigo de Buenos Aires, as poucas fotos do Fabricio bebê, a primeira vez no Cirque du Soleil...
    Enfim, um quadro com recordações que só fazem sentido para mim e para o Fabricio... Mais para mim, eu diria!!! Rssssss... Amei seu texto!!!
    Bom fim de semana!!

    Beijos.
    Mo

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