Cerco vivo




Clareou a segunda com a vitória dos garis. O lixo ganhou do luxo. É gostosamente utópico quando Davi vence Golias, pelo menos uma vez. A gente volta a acreditar no sonho. No idílico desejo de viver numa sociedade fraterna, liberta e igualitária. Quem limpa a sujeira burguesa, respirando o podre da vida, merece dignidade plena ainda longe de ser experimentada. 

O moço negro (como não?) de dente quebrado e simpatia inteira acordou com mais disposição hoje. Pegou a condução desumana, sacolejou por provavelmente minutos que viraram horas, mas não se importou. Hoje não. Amanheceu esvaziando lixeiras mais gente, mais cidadão. Vestiu o uniforme laranja ciente de que é parte da sociedade. Que seu trabalho inferior é determinante para o bem-estar dos demais. 

Essa constatação me deixou um pouco menos alquebrada de ser brasileira. O povo que não desiste nunca, sei não, tá ganhando contorno de lenda urbana. Tô quase jogando a toalha, empunhando a bandeira branca, batendo a mão no tatame... É difícil demais lidar com todas essas injustiças diárias. Com a violência que agora chega ao parquinho da minha quadra. 

As hordas de mendigos, moradores de rua, enrolados em cobertores “sapeca negrinho”, Paraíba ou qualquer outra conotação preconceituosa delatora da condição desses subcidadãos, estão espalhadas pelos becos. Sim, Brasília agora tem beco. Corredores estreitos criados pelo medo. 

A classe média ergue suas cercas, barreiras cada dia mais altas entre as casas. Entre os prédios, são cercas-vivas cada vez mais vivas. Se a cidade não fosse tombada pelo patrimônio histórico mundial, seríamos um forte em escala gigantesca. 

Cansa-me a elite fedida. Esgota-me a incivilidade diária dos meus compatriotas que insistem em toda a sorte de mesquinharias. Do papel de bala no chão ao desvio de milhões de reais que poderiam fazer desse país uma nação. Tudo é esgoto a céu aberto.

Por isso, quando leio que a gestão Haddad pretende vetar a construção de arranha-céus no meio dos bairros de São Paulo, sinto uma faísca da brasilidade se pronunciar. O carvão está entorpecido, nocauteado. Mas sou tão simplória... Posso voltar a pegar fogo sem jornal amassado no álcool e outras artimanhas. 

Mostrem-me um pouco menos de mediocridade e falta de escrúpulos; um pouco menos de ganância predatória; um pouco mais de reconhecimento governamental aos profissionais que fazem a diferença numa comunidade respeitável, que já me agarro ao lirismo de crer num Brasil mais coruja para com as crias. 

Quisera não doer nos meus filhos o sentimento de gerações e gerações de brasileiros que existem pela metade. Seres marcados pela angústia de não se reconhecer como rebentos dessa pátria-mãe nada gentil. 


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