Ciranda




Em memória de Jandyra, Lizette e Theosofia, 
mulheres que marcaram a ciranda da minha vida


Eram duas meninas, a verde e a vermelha. Irmãs. A verde era a mais velha de todas. A vermelha, a caçula. Cresceram nos subúrbios do Rio de Janeiro, entre um morro e outro de Lins de Vasconcelos. A verde cuidava de todos os irmãos. A vermelha era mimada por todos os irmãos. E ainda havia, entre a irmandade de oito, uma irmã azul. 

A irmã Azul era a mais rebelde. Magrinha, magrinha, cresceu, aprendeu a fumar e a beber. Gostava de samba e de cozinhar camarão ensopadinho com chuchu. Casou com um estivador e engravidou algumas vezes, porém só quis ser mãe de um único filho. Verde reprovava o estilo e as escolhas de Azul, mas não conseguia viver sem ela. Uma no Rio, outra em Brasília: inseparáveis. 

Azul passava temporadas na casa espartana de Verde. Irmãs em pé de guerra por causa da cerveja, do cigarro e do rádio no último volume. Verde gostava de ordem, disciplina e de São Judas Tadeu. Não casou, não engravidou, não perdeu a linha uma vez sequer. Vestia verde por causa do manto do santo de sua devoção ou seria por outro motivo qualquer? O tempo apagou a resposta. 

Mas tudo na vida dela era verde. Os vestidos (ela não usava calças compridas); a sombrinha; o centro de mesa; a toalha de banho, o bolo de cada aniversário que fazia questão de celebrar. Azul gostava muito do brim azul de suas calças justas e dos cintos marcando a cintura de vespa. Já Vermelha parecia uma pomba-gira a balançar seus brincões dourados e pulseiras, em contraste com o estampado rubro de saias florais. 

Seria um trio exótico se saíssem as três na calçada, assim, lado a lado. Mas a verdade é que nunca passeavam juntas, as tricolores. Verde era pontual, madrugadeira, formiga. Vermelha era dorminhoca, preguiçosa. Azul não gostava de ir para a igreja aos moldes de Verde. Não participava de programas de caridade como a primogênita. Apenas ouvia rádio (adorava o noticiário criminal); falava dos netos e do poder curativo do alho, enquanto baforava seu cigarro no alpendre. No mais, via televisão. Globo nunca, só SBT. Cigarra. 

Verde saiu de casa cedo pra dar aula numa comunidade de alemães no interior do Espírito Santo. Azul era sustentada pelo estivador boa praça. Vermelha também se casou e teve três meninos com um deputado fluminense e comunista. Porém, logo ficou viúva, pois o marido acabou preso, torturado e morto na época da ditadura. Será que o jovem político caíra de amores por Vermelha devido à ideologia cromática? 

Verde ajudou a criar os três filhos de Vermelha, como de costume. Azul também enviuvou, mas de causa natural. Continuou a fazer algazarra na vila de casas em que morava, a mesma na qual nascera, além de receber Verde para temporadas de implicâncias diárias. Depois, era a vez de Vermelha viajar até Brasília para ficar com Verde e assim sucessivamente. Ano após ano, umas nas casas das outras, mas nunca as três compartilhavam o mesmo espaço-tempo. Como se soubessem que a ciranda funcionava melhor do que o trançado. 

Verde não cansava de espezinhar Azul, talvez com inveja ou ignorância de tanta liberdade. Em contrapartida, nunca dizia não para os caprichos vermelhos da caçula, chatinha, chatinha, como toda garota mimada. Verde preparava moqueca de cação, galinha ao molho pardo, feijoada... Tudo por amor às irmãs de outras cores. Também não faltavam licor de jenipapo e doce de figo, que na verdade era de jiló, mas enganava muito bem.

À medida que foram envelhecendo, os almoços ficavam cada vez mais barulhentos, pois Azul não desligava o rádio enquanto Verde já não ouvia o que se dizia à mesa. Vermelha parou de vender roupas que trazia do Rio para os “caipiras” de Brasília porque o filho virara juiz (graças ao empenho da tia Verde). Agora Vermelha se achava ainda mais chique, mãe de magistrado, e ficou ainda mais caçula, se é que isso era possível. 

Um dia, Azul perdeu seu único rebento e se tornou a louca do jardim. Verde, rompeu a barreira dos 95 anos e decidiu virar semente de ipê. Germinou, cresceu e floriu amarela, olha que coisa! Todavia, segue esguia, altiva e impassível a censurar os passantes. Vermelha, não sei por onde anda e se ainda anda. Talvez tenha virado rosa egocêntrica do Pequeno Príncipe. Ou bandeira de esquerda nas manifestações. 



Comentários

  1. que texto delicioso :)
    beijos multicoloridos, Débora.

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  2. Tão bom que parece até que é inventado. Mas eu que conheci as três velhinhas atesto que é tudo verdade, nos mínimos detalhes. Parabéns pelo texto. Beijos.

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  3. Adorei, Loo! Cheio de pérolas criativas, como "ficou ainda mais caçula, se é que isso era possível". Rico. Grata por nos presentear com esse texto. Beijo grande.

    Má.

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    1. adorei essa frase também, Marisa!

      Débora.

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  4. Ai Luciana, acabei me confundindo com as cores! Mas te li! Afinal, que cor é você?

    Evelyn

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    1. Eu? Acho que eu sou um pouco das três mais outras cores juntas, como o roxo, que transcende e também tem lá a sua melancolia. Na verdade, esse texto e baseado em fatos realíssimos. Verde foi minha amada madrinha, que faria 99 anos nesta quinta-feira, 27, dear Evelyn!

      Lulupisces

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  5. Esse texto mostra cada qual com suas diferentes tonalidades ...Quem um dia foi verde se tornou amarela.... Mudanças que todos nos podemos nos proporcionar aos 5 , 10 , 20 ..." 95 anos decidiu virar semente de ipê. Germinou, cresceu e floriu amarela, olha que coisa! ".

    Simone

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