Visita Egoísta




Sabe quando as palavras ficam curtas para explicar tudo que acontece com você? Eu não sei. KKKK! Até que seria interessante não ter palavras a jorrar de vez em quando. Mas meu rio continua caudaloso. Amazonas, Negro, às vezes mais pra São Francisco, sofrido. Noutras, olho d’agua, ribeirão, nascente, riachinho, vertente... 

Há males que vêm para o bem, garante o dito popular. Eu só acredito se for um malzinho besta, pecadilho como o que aconteceu ontem. Tinha um exame marcado e a secretária da clínica liga - exatamente no segundo depois que já havia perdido minha paciência procurando vagas no impossível Setor Hospitalar Sul - pra avisar que não seria atendida no horário. 

Ó como era gostosa a minha Brasília prosaica, cidade do interior! Hoje estamos bufando por aí no trânsito caótico, na abundância de carros e escassez de gentileza... Praguejei mentalmente todos os impropérios. Fazer o quê, agora? Ficar naquela ante sala minúscula repleta de mulheres grávidas e seus maridos incomodados? 

Decidi vagar pela 715 sul. Território muito dantes navegado. Nasci e cresci entre seus blocos de casas geminadas. Naquelas calçadas corri; naqueles asfaltos ralei meus joelhos dezenas de vezes. Pique-pega; polícia e ladrão; queimada; parquinho atrás do bloco E, meu bloco. 

Entretanto, pouco reconheci de tudo o que vivi. Da 715 sul da minha infância e adolescência só restou o traçado, os números das casas e as letras do alfabeto. O parquinho se foi faz tempo, engolido pela sanha feroz dos estacionamentos improvisados que abarrotam a capital. Cada morador agora desrespeita o gramado e para o automóvel na porta. 

Os jardins individuais deram lugar às garagens com piso de porcelanato. As cerca-vivas viraram grades altas e amedrontadoras. Procurei um vestígio das árvores que eu subia então. Não encontrei. A grande caixa de luz ainda está lá. Atrás dela a gente se escondia e os mais velhos se beijavam. 

Alcancei a ponta do bloco E que, na meninice, parecia interminável. Agora ficou tão curto! Vim passando de casa em casa, perscrutando o que as muralhas de segurança me permitiam ver do interior delas. E de repente já estava na frente do local onde nasci. Meu primeiro ninho. Havia um senhor à porta com um cão pequeno e chato. O ínfimo mamífero latia para mim. Comecei a desviar da calçada, porém me detive: 

- Ele morde? 

O velho segura o cachorro no colo e, enfim, posso me aproximar daquele que já foi o lar da minha família. Mamãe, sete filhos, cachorro, fusca azul diamante, moto, preá... Que susto tomei! A casa que me acolheu é a de número 21. Como pude me olvidar que o dia do meu aniversário é o mesmo que a identifica? Fiquei feliz, logo eu, a que crê em conexões telúricas. 

- Eu nasci e cresci nessa casa, contei ao velho. 

- Então você é parente do Ricardo Assunção? 

- Sim, sou a irmã caçula dele. 

O velho pergunta coisas sobre o meu irmão mais velho e eu só posso pensar na tristeza de ter um irmão que nunca conheci de fato. E que agora voou para bem longe e seguirá afastado como sempre esteve. 

Da casa original, nada restava depois de sucessivas reformas. As moradias projetadas para representar o ideal arquitetônico da modernidade foram tomadas por puxadinhos e andares a mais. Tudo de gosto arquitetônico sofrível e apertado. O brasileiro e o sonho da mansão geminada... 

Segui andando até a casa da esquina e toquei a campainha uma, duas, três vezes. Pensava em desistir, mas ela chegou. A derradeira conexão daquela quadra comigo ainda reside ali. Dona “Marinês”, Maria Inês. Foi ela e seus quatro filhos que me livraram da infância solitária entre irmãos adultos. Naquela primeira casa do bloco E, passei as horas mais livres e lúdicas da 715 sul. 

- Vim fazer uma visita egoísta!, anunciei. 

- Ela abriu um sorrisão e retrucou: Como assim, visita egoísta? 

Matamos saudades, relembramos o passado, falamos do presente. Dona Marinês e sua luz calma e zelosa. Sua fala baixa e gentileza contrastando com a minha natureza bala de canhão. Estava feliz! Logo surgiu Claudio, um dos quatro queridos amigos de traquinagem. E ali papeamos boas e velhas recordações. 

Os minutos que seriam torturantes na ante sala abafada tornaram-se mágicos. Estava à vontade num espaço de acolhimento querido. É reconfortante saber que há pessoas íntimas em nossas vidas por mais que estejamos longe delas. Há mesmo malezinhos que vêm para o bem!


Comentários

  1. Belo texto...gostoso de se ler, suscita dentro da gente uma vontade imensa de rever lugares e pessoas que fizeram parte do nosso logo ali,passado.
    Aproveito para parabenizá-la pelo seu dia...afinal te considero uma poeta,e sim, hoje é o Dia da Poesia!
    "A poesia é sempre um ato de paz"
    (Pablo Neruda).
    Namastê!
    Cynthia

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  2. Luciana,

    muito legal o seu reencontro com a sua antiga vizinha, e seu coleguinha de estrepolias.
    Ás vezes penso (viajo) pelos meus caminhos da infância.
    Minha casa já não existe mais. Penso em tirar uns dias, e ficar pela cidade (Caldas), andando por aqueles caminhos, e ver o que se tornaram.
    Mas a gente sempre vai deixando pra "depois".

    Um beijo
    Paulo.

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    1. Olá, dear Paulo!!

      Poizé, foi bacana mesmo! Que bom que eu decidi andar pelas quadradezas ao invés de morrer de tédio e preguiça no consultório... O dia estava superquente, mas valeu a pena o suor derramado. Experiência imperdível essa de revisitar nosso passado!

      Abraço apertado para vocês aí!

      Lulupisces.

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  3. Que lindo!
    É sempre assim, né "Nunca volte aos lugares da sua infância" rs porque aquela imagem que vc tinha de tudo tão amplo, imenso, se desfaz com a realidade... como nosso olhar infantil é mágico! Tenho sua casa, sua quadra, na minha memória... lá nunca haverá reformas e essas modernidades frias todas. Lá sempre será um lugar gostoso de ficar, de rir, de papear, de tomar chá mate, de comer banana frita, de ter medo de fantasma atrás da porta na hora de dormir... simples assim!
    Bjs!

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  4. Adorei o texto, Lu!
    Fiquei com uma baita saudade da minha infância que, agora, além de estar longe no tempo, está longe fisicamente, já que moro a milhas de distância de onde nasci...

    Miles de besos,

    Cris de Lamônica

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  5. Bom-dia, querida Luciana, legal!
    Cumprimentos pelo seu gesto. É isso aí!! Sempre é tempo, e quando a gente se gosta, a distância física e temporal não nos impedem de nos manisfestar.
    Valeu!
    Beijos, feliz final de semana a vocês,
    Guti.

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  6. Putz, que sorte reencontrar a sua casa de infância... Ainda que diferente.
    Militar não tem casa fixa. O máximo que tenho para reviver e mostrar às minhas filhas é uma quadra, seus blocos e nossas histórias. As casas onde vivi estão em outros estados, quiçá nem existam mais. Talvez assim seja melhor. Restam as lembranças intocadas... A casa azul de Lages às vezes me revisita em sonhos.
    De acordo com Gaston Bachelard, devia ser proibido voltar aos nossos lugares da infância. Atualizar esses cenários só traz inevitável decepção e deixa um vazio no lugar onde o devaneio (projeções da infância) habitava.

    Mas... pra vc foi bom, né? Acho que eu tb gostaria. Who knows? ;)

    Bjitos,

    Isa

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  7. Ué, prima! Tu fizeste um post intitulado visita egoísta . Daí você falou, falou, falou mas não explicou o conceito de visita egoísta. Mesmo relendo o texto, tentando extrair dali alguma definição, não cheguei a nada que me satisfizesse.
    Por isso eu te pergunto: afinal, o que é uma visita egoísta? Ou o mistério faz parte do charme do texto?

    Valdeir Jr.

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    Respostas
    1. Ué, primo, achei que estivesse claríssimo!! :)
      A minha visita foi completamente egoísta. Apareci sem avisar, com o único intuito de passar o meu tempo de uma forma agradável. Sem tem de ficar presa no consultório médico.
      Nao quis saber se a Dona Maria Inês estaria em casa, se estaria ocupada, se estaria a fim de receber uma visita no meio de uma tarde de semana... Peguei a coitada de robe e descabelada. Mais egoísta do que isso, só dois disso.
      Ela morreu de rir da explicação, ainda bem! E ainda bem que sou de casa, apesar da enorme distância atual. Um passado em comum deixa muitos laços...

      Abreijos,

      Lulupisces, a enigmática.

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  8. Conexão telúrica foi ver nossas experiências parecidas em um pequeno intervalo de tempo - e ambas falando de mágica - e eu só li seu texto agora. coincidências poéticas. na 204 muita coisa mudou, mas muita coisa me pareceu igual ('igual-diferente', pois a casinha de eletricidade me parecia um pouco mais afastada do meu antigo prédio, e ela é colada nele). pena que não tive a oportunidade que você teve, de visitar alguém querido de outros tempos. enquanto eu caminhava ontem, pensava nas pessoas em que eu era mais ligada lá. todas já se mudaram e há muito tempo. essa amiga mesmo que fui para o aniversário é uma amizade muito recente. teria sido ótimo bater na porta de algum apartamento familiar, mas de toda forma valeu muito a pena.

    Beijos,

    Débora.

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