Olhar fatal

“E ai ela cisma de voltar...” Engraçada as associações que o baú da mente faz. Também, imagina o tanto de tralha que fica guardada no meu: bilhete em guardanapo, declaração de amor em agenda do colegial, primeiro beijo na boca, primeira vez que a menstruação vazou, manchou minha calça jeans aqui-não-passa-nem-pensamento e eu pedi o casaco da melhor amiga para amarrar na cintura e esconder o vexame... E aí, quando começo a escrever, a primeira coisa que me vem à cabeça é essa música do Francis Hime, tão velhinha, na voz do Chico. Nem gosto tanto dela, mas ela tá lá, no meu baú, porque o baú da Lulu é eclético.

Pois é, eu cismei de fazer um retorno triunfal ao visceral mundo da academia de ginástica. Depois de uns 15 anos, decidi voltar à tirania da boa forma. Aquela que um dia eu tive, nos áureos tempos do balé e dos 18 aninhos... Bundinha pra cima, cinturinha 65 cm, zero quilômetro...

Aí rolam as pedras, os filhos, as perdas, o acidente de bike e percebo que perdi “toda alegria de fazer meu tic-tac, dia e noite, noite e dia”. Não sou mais um relógio. Meu corpo não me pertence anymore. A autodisciplina para caminhar e correr se esvaiu. Praticar ioga de repente se tornou exercício de menos, pois minhas coxas e barriga querem sempre demais.

O mais estranho desse retorno aos 40 é me ver na pele daquelas pessoas que chegam na academia e são recebidas pelos olhares hostis das gatinhas de 20. E com a falta de cobiça por parte dos machões-puxa-ferro: “Xi, lá vem mais uma pelancuda... E ainda por cima quatro olhos!” Ei, eu já estive do outro lado, tá? Eu era chamada de gostosa, tá entendendo? Qual o quê! Ninguém me nota, ou pior, notam em mim um caso perdido: “Não dou um mês para ela desistir”.

Assim vomitou o crivo do olhar da professora-gostosona-cabelão-24-horas ao gritar no meio do salão: “Há quanto tempo você não malha?” Tem que ter muito estômago e uma autoconfiança absoluta para não virar geleia. Isso depois de ter passado por uma avaliação que, sem piedade, faz você corar de vergonha: “Dezenove dos seus 63 quilos são de massa gorda”, proferiu a sentença o excelentíssimo senhor juiz, Sistema de Computador da Composição Corporal.

Mas, vencidas as barreiras preliminares e quase intransponíveis (pobres dos que sempre se acharam corporalmente inadequados ou feios e precisam se matricular numa academia. Hoje sei muito bem o pânico que sentem. Ou seria ódio?) Eu sentei na bicicleta e parti para a minha aula inaugural da modalidade batizada de circuito/pedal.

A professora-gostosona-cabelão-24-horas demonstrou alívio ao saber que eu fazia ioga, mas pediu para eu pegar leve. E ficava me checando de rabo de olho, gritando de vez em quando: “Tá tudo bem aí, gata?” 493 litros de suor escorrendo do meu corpo com 30% de gordura, mas toda uma vida pela frente. Fui até o fim. Não parei de pedalar.

Entre uma acelerada e mais outra e mais outra, a gente para, desce do camelo e vai pro colchonete fazer umas 250 abdominais. Só que aí eu tiro de letra, pois me incluo no 1% da população mundial que curte fazer abomináveis. A turma, cheia de gás, gatinhas e gatões, chia. Eu me deleito. A professora-gostosona-cabelão-24-horas começa a acreditar que não era história pra boi dormir a minha resposta: “Mas eu nunca parei de malhar... Eu faço ioga duas vezes na semana, duas!”

Saio da sala e cruzo a área da musculação com pose de diva (as pernas bambas, marionete descabelada, mas sem perder o rebolado). “Vocês vão ter de me engolir! O meu plano é semestral”, avisa o meu olhar fatal.