Bandeiras Brancas




Para Loey, com toda estima e solidariedade

O mundo é pequeno e redondo. Cada dia mais redondo, como se tivesse rolando na velocidade da luz e sua circunferência estivesse a cada minuto mais gasta. O mundo está diminuindo... Estará mesmo acabando? Seixo desgastando até a poeira cósmica original? 

Dois acontecimentos me comprovaram que estamos conectados nessa tênue e misteriosa linha da vida planetária. Nasci e vivo no Brasil, portanto nunca vi uma guerra de perto. O terrorismo nunca bateu às portas da minha família. Não convivo com atos arbitrários de ditadores. 

Os tanques e as atrocidades das batalhas estão do lado de lá e chegam até meu coração pelas notícias parciais dos jornais. Na verdade, não sabemos desses conflitos em seu cerne porque os filtros do subjetivismo baseado em preconceitos, em achismos, em cultura ocidental X oriental, aliados à superficialidade jornalística atual (ou foi desde sempre?), só nos permite vislumbrar um recorte do que se desenrola nas carnificinas espalhadas pelo planeta, não o que acontece em si. 

Mas o segundo marido da minha tia é sírio. E esse pequeno fato mundano trouxe a dor daquelas pessoas para o meu quintal. O pai desse homem adulto, barbado e à beira da terceira idade faleceu ontem. Desde que a ensandecida guerra civil irrompeu por lá, o marido da minha tia não pôde colocar mais os pés em Damasco. 

A gente nunca vai saber o que isso significa, não é mesmo? Moramos num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Talvez venhamos a experimentar (não, de jeito nenhum, que as forças do bem estejam do nosso lado), a violência tosca da nossa execrável miséria social. 

Ninguém está livre de ser vítima do trânsito selvagem brasileiro. Ou de um assaltante que não tenha nada a perder (o tipo que mais abunda em solo nacional). Porém, da dor da guerra, a mais demente prova da crueldade do ser humano, quem sabe dessa experiência traumática, estejamos a salvo. 

Então ver um homem de quase dois metros de altura desabar ao chão a chorar com a cabeça encostada no colchão seja o que de mais verdadeiro eu possa vivenciar sobre os conflitos no Oriente Médio. Esse homem é parte da minha família e tem a família dele presa na armadilha fatal do terror. 

Esse homem não vai poder velar o pai, consolar a mãe e os irmãos e ser abraçado por eles. Coisa simples, que você e eu fizemos ou faremos. O ir e o vir; o velar e se despedir de seus entes queridos. Essa humanidade básica lhe foi negada. E eu me irmano na impotência dele. Na anulação do que faz dele uma pessoa. A Síria hoje, neste momento intensamente triste, está mais perto de mim do que nunca esteve. 

O outro episódio, mais leve e alegre, reafirma a existência das por mim batizadas conexões telúricas. Os mais pragmáticos gostam de tirar sarro, mas eu prefiro seguir acreditando que o acaso existe recheado de situações camufladas de não-acasos. 

Meu filho quis fazer aulas de violão. A prima dele, harpista, me indicou um amigo dela, formado no instrumento pela UnB. Ontem, uma amiga que nunca me liga, tentou falar comigo e eu não estava. Liguei de volta na manhã seguinte. Ela não atendeu. Desencontros.

Liguei para uma amiga comum de ambas, um pouco preocupada, pensando que poderia ter acontecido algo de não tão bom. Essa amiga de ambas disse que estava tudo bem e as duas apenas queriam me convidar para o show do primo desta, violonista, que se apresentara no Balaio Café. 

-Como? Não vai me dizer que o seu primo é o João Batista!

-Ele mesmo. Você conhece? 

- Cacá, ele é o professor de violão do Rômulo! 

E seguiram-se as costumeiras risadas e explicações deste intricado novelo que me colocou dentro de outra família, dessa vez, por motivos mais nobres. Agora, o clã da amiguinha dos tempos da faculdade faz parte do meu, entra na minha casa e ensina os acordes das delicadezas dessa aldeia global para o caçula. 

Que os seis graus de separação das teorias nos indiquem o mapa da compreensão prática e generosa de nossos semelhantes aqui ou em Bagdá. Que não seja somente mais uma das fantasias do meu insistente romantismo. 



Comentários

  1. Muito emocionante seu texto. Faz-nos refletir sobre as insanas guerras e nosso mundinho confortável.

    Conheço pouco o Loey mas o considero uma pessoa de caráter.

    Márcia Holanda

    ResponderExcluir
  2. Muito legal, Lu, parabéns pelo texto! E que mais casos leves e alegres comprovem a existência das conexões!

    Maria Carolina.

    ResponderExcluir
  3. Brasília é mesmo um ovo de codorna, rs.
    Adorei o texto.
    Beijo,
    Mona

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos