O blefe

Sonho meu... Sonho meu...

Chegara a hora. Não era possível adiar nem mais um dia. Como ter 42 anos e nunca ter feito um pudim de leite condensado? Saiu do torpor do sofá onde assistia a mais um episódio das inúmeras séries de investigação criminal chamadas de paranoicas pelo marido. Tolinho... Mal sabia o esposo que ali estava uma forma de canalizar os instintos assassinos em relação ele. Deveria agradecer a quem inventou tantos crimes mirabolantes para ser desvendados, isso sim! 

Pesquisou várias receitas no IPad e se sentiu bastante moderna. Algumas pareceram fáceis demais porque, de fato, qual é o segredo de um pudim de leite moça? Mas primeira vez é first time. A gente treme um pouco, desengonça, desajeita. Resumindo, a insegurança batia forte. Tão forte quanto os chefs sugeriam bater todos os ingredientes: ovos, leite e a invenção dos deuses - engrossado cremoso, leitoso e suculento, que serve para fazer a suprema felicidade dos chocólatras: brigadeiro, iguaria que ela dominava com louvor. 

Aportou na receita do site da Ana Maria Braga. “Mas você não acha o programa dela brega, mamãe?” Sim, achava, mas as receitas lhe pareciam boas e confiáveis. Essa acrescentava até umas raspinhas de laranja. Abriu a lata de leite condensado Itambé (o que poderia por a perder toda a receita, refletiu). Etapa finalizada não sem dificuldade, por ser canhota. Três ovos quebrados no copo, para evitar surpresas desagradáveis. Uma única laranja na fruteira fornecerá casca suficiente? Vá lá! 

“Quanto mais mesclar a mistura, mais areado ficará o pudim”. Deixou, então, o liquidificador zunindo enquanto preparava a calda de açúcar caramelizado. Havia minúsculas formigas no açucareiro (precisamos de novo veneno, pensou). Entretanto despejou o conteúdo do pote azul na panela assim mesmo. Vai ferver, diluir, sumir, justificou-se. Aos poucos, aquela fórmula branca foi se tornando aromaticamente dourada... Salve Química, a rainha da cozinha! Ou seria Física? (sempre embaralhara os conceitos das duas matérias, tristeza). 

Tudo pronto na forma de porcelana para ir ao forno por 50 minutos. Tudo em vão. A escolha da forma foi que pôs tudo a perder, afinal. Por que crescera os olhos para ela (tão branca, tão bonita!) e ignorara a humilde e arranhada forma de alumínio? Uma hora de forno a fez desistir. O conteúdo da forma saíra da bocarra ardente do mesmo modo que entrou. A mistura permaneceu impavidamente líquida. O primeiro pudim dela resultara num grande fiasco. Como sói ser as primeiras vezes, consolou-se. 

O marido retorna do trabalho e se espanta com o súbito ataque de cozinheira da esposa. Observa o fracasso da companheira dentro da forma e diagnostica: “Você deveria ter usado a forma de alumínio. Essa é muito grossa e, além disso, a porcelana é um isolante térmico”. 

Indignou-se: para que serve a @$%&(#”+=##) dessa forma, então? Só para enganar as desavisadas e desengonçadas cozinheiras de ocasião? Teve uma louca vontade de assassinar o objeto de porcelana na parede. E de ter prestado mais atenção nas aulas de Física e Química, evidentemente.