Loucura sã!


Dedico esse texto ao casal Elisabeth e Thoróh





Acordei zonza depois de míseras cinco horas de sono. Ninguém ainda invadiu o meu quarto. Nem o meu marido está no meu quarto. Que milagre de Natal é esse? Ligo a TV ao acaso e começa "A Family Man", um típico filme natalino, pero no mucho. Eu curto esse filme com o Nicolas Cage surtando ao perceber que deixou de ser um homem solteiro e cheio da grana para virar um suburbano com dois filhos, esposa e dívidas. Don Chandler dá o seu show particular no início da história. É uma narrativa que mexe com a gente, com os valores. E se... E se eu tivesse decidido não me casar, não ter dois filhos? E se eu tivesse aí, solta pelo mundo, sem laços indissolúveis?

E o Nicolas/Jack ouve ópera no último volume enquanto coloca seu terno de dois mil dólares (na época das filme, claro). E eu saio do quarto triunfante e resolvo fazer uma seleção pessoal das árias que mais gosto.  Enquanto isso, meus dois filhos, já acordados, passam batido pelo presente do Papai Noel que colocamos no meio do corredor para que eles não nos tirassem da cama de madrugada. "Podemos abrir nossos presentes?" Ué, vocês passaram por cima deles e nem viram, manezinhos!!!

Com suas varinhas da saga Harry Potter nas mãos eu começo meu passeio lírico, sempre recordando minha amada amiga Elisabeth, para sempre minha soprano favorita, pois é minha. Está ao alcance dos meus beijos e tietagem. É heroína de verdade, mãe de três garotões, um deles especial. Ela canta e seus males espanta. Ela canta e me deixa com nó na garganta porque conheço sua vida dramática, muito mais real do que a de Callas.

E o Natal amanheceu amarelo e verde na minha janela. Eu, a louca da casa, ouço ópera no volume  máximo enquanto meus filhos rasgam embrulhos e enchem os olhos com seus regalos.  Começo a seleção com uma ária apropriadíssima para essa manhã: "Nessun dorma" (ninguém dorme) interpretada por Luciano Pavarotti no auge de sua performance vocal. Recordo a comoção que inundou meu canal lacrimal ao ouvir ao vivo essa obra-prima no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque. Nunca mais fui a mesma. Nunca mais essa melodia deixou de me assombrar.

Pulei para Lakmé. O dueto entre ela e Mallika... E aí foi a vez de outra memória poderosa. Visitava Cacau em seu apartamento no Guará I. Fazia muito tempo que não via meu amigo-amor. Do lado de fora da porta podia ouvir o dueto. A música atravessava as paredes e me atingiu eternamente. Cacau apareceu no meio do portal e vi um gato enorme e maravilhoso calmamente virar seus olhos misteriosos para mim. Estava sacramentada a minha história afetiva com essa ópera.

Tomo nas mãos o CD de "La Traviatta" e fico na dúvida de qual parte escolher, pois é a minha ópera favorita, linda do começo ao fim. A única que ouço com frequência dentro do carro, singrando o trânsito como se fosse uma diva...

Daí saquei Carmem de Bizet e sua Habanera. Os ritmos madrilenhos e a mulher poderosa que joga com o amor de dois homens. Que menina não quer ser Carmem por um dia? Meus filhos correm pela casa curtindo seus brinquedos e eu rodopio como a transtornada Lucia di Lammermoor, que perdeu o juízo de amor e incompreensão. E retorna as lembranças de Elisabeth cantando a ária dolorida apenas alguns meses depois do nascimento dos gêmeos. Colocando sua alma de mãe alquebrada pela doença dos filhos à expiação da plateia na pela de Lucia. Acho que nunca chorei com tanta vontade como naquela apresentação.

E como o clima estava para o trágico da vida, nada como ouvir "Un bel di", de Madama Butterfly. A mesma ária escolhida pela insana Glenn Close no day after sexo selvagem de "Atração Fatal". As óperas são a trilha sonora perfeita para os desajustados... Tô me denunciando...

Os homens da casa começam a montar o Playmobil Agente Secreto e eu troco de tom para a marcha triunfal de Aida, a primeira ópera que eu vi na vida no Teatro Municipal de São Paulo. Dizem que com ópera é assim: ou você ama ou odeia à primeira vista. Amei. Ratificado estava meu coração romântico.

Os agudos e graves rolam em altos decibéis (ouvir ópera baixinho é uma heresia) e eu torno tudo mais surreal batendo no liquidificador porções mágicas de Natal para o café da manhã dos garotos. Pêssegos, ameixas e cerejas mesclam-se com leite enquanto me delicio com uma fatia do bolo de nozes da minha sogra. Uma tradição natalina da melhor qualidade que prefiro comer fria, no dia seguinte, como uma vingança contra os quilos a mais adquiridos nas festas de fim de ano.

E para terminar os highlights operísticos, La Bohème, que assisti ao vivo numa montagem do Teatro Nacional Claudio Santoro. Não tenho grande afeto por essa ópera, mas é sempre uma memória gloriosa saber que Brasília pode montar óperas desse calibre, apesar de não o fazer todos os anos, como um teatro de verdade que se preze.

E se eu não tivesse essa casa? Essas óperas? Esses filhos? Eu não poderia escrever todos esses textos do blog. Não nos é ofertado vislumbrar o que poderia ter sido outra escolha de vida, como acontece no filme com Nicolas Cage. Portanto, aproveitemos, sem arrependimentos, nossos caminhos do aqui e agora. Sem esquecer de  curtir, não só o facebook, mas também muita música de arrancar lágrimas de beleza cristalina.

Feliz Natal!!


Meus highlights para você virar um fã de ópera (não custa tentar!!):

http://www.youtube.com/watch?v=TOfC9LfR3PI

http://www.youtube.com/watch?v=FAgXVmxVpT8

http://www.youtube.com/watch?v=RZUonmbtVQo

http://www.youtube.com/watch?v=MdeN9hEa7Ms

http://www.youtube.com/watch?v=I8gpNbEy9iA

http://www.youtube.com/watch?v=naVfSy1_UYE

http://www.youtube.com/watch?v=-4dOpvVMfqg

http://www.youtube.com/watch?v=N50J18CtWDg

http://www.youtube.com/watch?v=Bm29-POmIg8

http://www.youtube.com/watch?v=-nEu8BNVCeA

Comentários

  1. Lu!

    Obrigada por seu doce presente musical de Natal!!

    Beijos,

    Clarice Veras.

    ResponderExcluir
  2. Eu, claro, amei o Luciano. Além de ser mais palatável (sou muito inculta para apreciar ópera, o mesmo acontece com os peixes), é tudo focado nele e suas rugas lindas (como as do Caetano e do Chico), transbordando felicidade de cantar, fora o fato de tudo se passar no dia 14 de janeiro (egoica, eu? rsrs).

    Só para explicar: não tenho a mínima ideia se os peixes apreciam ópera, eu é que não aprecio os peixes rsrs, e todos elogiam essa iguaria, ou essa beleza, ou essa tranquilitude (tranqulidade e quietude, se é que preciso traduzir). E outra do nessum dorma: não sei do resto da música, mas pelo menos isso é o hino das mamães até o fim da vida, ao que parece.

    Beijos, lindo texto! Obrigada!

    Má.

    ResponderExcluir
  3. Agora eu q fiquei emocionada!! Sabe que este abo abrimos com Traviata!! Em maio! Me fala qtos ingressos vc quer...

    Elisabeth Ratz

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos