Umbra e Penumbra*




Brasília… Uma prisão ao ar livre.
Clarice Lispector

Nessas manhãs de sol vindo das profundezas cenozóicas, um sol-lava, denso, fumegante, a Natureza nos lembra que ela não é nada além de visceral.

Assim como a voz de Bethânia, fervendo nossas entranhas. Ou também como perder a paciência com o filho sem medida, arrepender-se e passar a manhã com o estômago revirado. Porque ser mãe também não é nada mais do que estripar nosso amor dia após dia...

Ainda bem que a infância é clemente e hoje não tenho memória de nada que minha mãe tenha feito para me maltratar. Só lhe tenho amor e boas recordações. Que as lembranças de meus filhos também sejam de perdão.

Hoje amanheci Clarice... Um tantinho triste e feroz demais comigo. Vim de ônibus olhando pela janela e tentando apaziguar meus pecados. As palavras atrozes me queimavam os olhos do mesmo jeito que o raio de sol na minha saia.

Coloquei as mãos pequenas sobre o colo e observei a velhice chegando. Percebi os letreiros da W3 tão íntima. As fachadas que me ensinaram a ler voltaram do passado: BI-BA-BÔ, FO-FI, CA-SA DO BA-RA-TA... Agora é a vez de decifrar a Asa Norte.

As folhas secas do inverno caem sobre o largo para-brisa do ônibus enquanto acalmo lentamente a alma dorida. Pegar o coletivo para o trabalho é uma redescoberta da cidade como ela é. Um alívio não ser, mas apenas estar. Deixar-se levar... Não conduzir é libertador! Ainda mais para as mães que vivem a puxar os rebentos pelas mãos. A carga.

Os filhos esperam tanto de nós! Nos perscrutam do banco traseiro... Querem descobrir os segredos das nossas coisas mais escondidas. Filhos pequenos delegam seus coraçõezinhos de bem-te-vi afoitos à direção de nossas rédeas nem sempre justas, cordatas ou equilibradas.

Fujo do sol, não fujo. Estou com meio corpo banhado pela claridade. Um casal segue o trajeto comigo sem trocar palavra entre eles. Será amor? Será tédio? Ela passa as mãos sobre os cabelos rentes do companheiro. O relógio dourado contrasta com o cinza da cabeça. Ele não se rende. O silêncio é maior.

Levanto, demonstro a intenção de parar. O motorista abre a porta para mim. Desço. A leve brisa fresca resiste ao astro rei abrasador, brincando com meus cabelos. Sei que será o último sopro descompromissado do dia. A semana começa.


UMBRA, da palavra latina que significa sombra, é definida como sendo a parte mais escura da sombra, na qual uma fonte de luz é totalmente bloqueada deixando o observador sob total eclipse. Penumbra, por sua vez, é definida como uma região na qual somente uma porção de luz é distinguível, deixando o seu observador sob eclipse parcial. Em síntese, um observador na Penumbra experimenta um eclipse parcial, e outro observador sob a Umbra nada pode distinguir, permanecendo na obscuridade total, ou seja, na falta de claridade, em um estado do que é ininteligível. 

Comentários

  1. Minhas entranhas ferveram mesmo, com Bethânia. Lágrimas rolaram. O que é isso, né???

    Com filhos (e alunos) é tão difícil! Não sou mãe deles, mas tenho que educá-los!! Chamá-los pelo nome, repreendendo. E também elogiar, incentivar, passar a mão na cabeça, olhar com amor, aguentar as malcriações, responder perguntas inusitadas e às vezes inconvenientes e em público... muito doido! É um direito estranho, esse meu. Meus alunos lá, às 7 em ponto, entregues e eu tenho liberdade de dar a aula que eu quiser, falar o que eu bem entender com eles e aí aumenta a responsabilidade. É muito angustiante, um questionamento diário se estou fazendo o certo.

    Também tinha um casal que observei no banco a minha frente no ônibus hoje! Mas meu casal era feliz, falante, unidos por uma menininha gracinha de um cinco anos, pegando na mão dos dois, protegida, confiante, serelepe. Pensei em o quanto filhos podem unir casais. Se não fosse ela, seria a mesma coisa? rs.

    Coincidências telúricas!

    Bjs
    Patty

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    1. Como sempre as nossas coincidências telúricas, né Patty?

      É, ser professora de criança é ser mãe também. Imensa responsa!!

      Não acho que o casal do meu ônibus não era feliz. Me pareciam felizes em silêncio, o que eu acho muito absurdo!! KKK!!! Ficar ao lado de alguém e passar 15 minutos sem falar nada? KKKK!!!

      Beijão,

      Luzinha-Lulupisces.

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  2. Oi Lu,

    Um pouquinho baixo astral hoje? quem que nao tem dias assim? eu sei que eu tenho, um monte deles. Entao eu penso e penso e reflito e com o isso as horas vao passando e o sentimento dentro de mim vai se enfraquecendo e eu vou fazendo planos, prometendo para mim mesma que vou mudar isso e aquilo e assim eu vou levando, um acerto compensa todas as erradas e assim vai indo...amanha eh outro dia...

    Beijos,

    Evelyn

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    1. Oi Eve,

      eu fiquei triste por ter pagado o maior sapo, dado maior esporro e falado com o meu filho de cinco anos esquecendo que ele era uma criança... Ás vezes a gente perde o senso, não?

      Mas fui almoçar com eles e percebi que ele ainda me amava como sempre. Pude me redimir... Ufa!!

      Ainda bem que a gente tem a oportunidade de consertar os erros sempre que temos a consciência deles, né?

      Beijão,

      Lulupisces.

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  3. É Lu, consciência, sempre ela...e que continue assim, como uma sombra, sempre a nos chamar para o exercício da auto análise.E assim seguimos,equilibrando-se, desequilibrando-se e reeguendo-se sempre, eis a glória!
    Textos sempre reflexivos, profundos, densos...faz com que as "fichas caiam"...bj.
    Namastê!
    Cynthia

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