Perto do coração

  

    

Meus amigos e eu também gostávamos de tirar uns momentos de folga da bagunça na fazenda para filosofar. Pensar nas coisas da vida... Por que somos o que somos? Deus existe? Meninos e meninas pensam diferente? Por que o Brasil tem tanta gente pobre? Se o Vaticano é tão rico, por que ele não doa suas riquezas para diminuir a fome no mundo? (Essa questão a gente reservava para as aulas de religião. As freiras do colégio Notre Dame ficavam malucas procurando uma resposta e nos divertíamos com o desconforto delas).

A gente se esparramava na varanda para os momentos filosóficos. Cacau e eu numa rede; Marco Antônio com suas pernas longas deitado no chão de cerâmica vermelha; Kédyma, sentada no murinho junto com a Lara; Dedéia, na outra rede; Patty, recostada numa cadeira.

Conversávamos de tudo um pouco. Das aulas do colégio ao próximo trabalho de História que a professora iria passar. Do tombo de cavalo muito engraçado que a Lara levou ao o que iríamos aprontar no dia seguinte. Não raro, as noites ficavam curtas diante de tanta coisa que a gente tinha para tagarelar.

De vez em quando, fazíamos o jogo da verdade. Em roda, rolavam perguntas embaraçosas e escolhíamos quem ia responder.

– Dedéia, você já passou quantos dias sem tomar banho?

– Luciana, você é apaixonada pelo Marco Antônio?

– Bila, é verdade que você já beijou na boca?

– Cacau, você acha ruim os seus pais serem separados?

– Patty, por que você é tão calada?

– Lara, você já colou em alguma prova?

O papo ficava sério e era comum sair uma briga porque alguém do grupo se recusava a responder. Mas mesmo assim era divertido. A gente perdia o medo de enfrentar nossos problemas e aprendia a confiar uns nos outros, construindo a amizade verdadeira. Aquela que é para o que der e vier.

Das inúmeras vezes em que filosofamos, recordo de uma que foi especial. Estávamos sentados na varanda da velha sede da Salta Pau fazendo o quilo depois de almoçar um delicioso frango caipira preparado pela minha mãe (era a especialidade dela). Cacau, eu, Marco Antônio e Dedéia: ”o quarteto que é um trio porque o Marco Antônio não vale nada”. Esse era o nosso lema para irritar o Marco. Mas ele era tão tranquilo que não ligava para a brincadeira. Sem mais nem menos, começamos a pensar na nossa vida no futuro:

– Cacau, o que você vai ser quando crescer?

– Ah, eu acho que ele devia ser professor de Geografia. Ele sabe tudo quanto é nome de rio, de capital, de país. Até assina a National Geographic!!

– Lulu, deixa de ser enxerida. Eu perguntei foi pro Cacau, bronqueou Dedéia.

– Sabe que eu não sei, Dedéia. Mas eu queria mesmo era poder ter tempo de ler todos os livros do mundo. Aprender muitas línguas. Mas você eu sei. Eu sei o que você vai ser quando crescer.

– O quê, Cacau?, perguntei, afoita como sempre.

– Dedéia será a primeira presidente do Brasil!!!

Rimos todos uma só risada, mas concordamos. Ela tinha ideias ótimas para salvar nossas florestas. Para educar as crianças sem escola. Para colorir o mundo cinza da pobreza brasileira. 

– E a Lulu será a primeira apresentadora do Jornal Nacional!, continuou Cacau.

Naquele tempo, era o Cid Moreira que apresentava o Jornal Nacional. Nenhuma mulher havia, até então, conquistado este espaço na televisão brasileira. Os meus amigos já acreditavam que eu tinha jeito para ser jornalista.

– E eu vou dormir porque eu tô com sono, bocejou Marco Antônio.

– Grande novidade, né? O Marco tem de arrumar uma profissão em que ele fique sentado o dia todo. Só apertando botãozinho, brinquei.

Hoje, acho engraçado lembrar dessa conversa. Tão distante mas tão próxima da vida que a gente leva. É gostoso saber que nós tínhamos razão. Que nos conhecíamos de tal modo, que já éramos capazes de prever o nosso futuro.

Cacau atualmente mora em Florianópolis. Formou-se em Geografia, fala inglês, francês, italiano e espanhol. Tenho saudade da sua companhia inteligente.

Dedéia tem cinco filhos e é socióloga. Quem sabe a próxima presidenta, agora que a Dilma abriu a dissidência? As ideias mirabolantes e sensíveis ainda fazem parte dela. Trabalha na OIT e continua vivendo em Brasília.

Marco Antônio arrumou várias teclas para apertar. É analista de sistemas, fera da programação. Ele esteve no meu casamento e eu no dele. Coincidentemente, acabamos servidores do mesmo órgão, o STJ. O destino nos dando presentes...

E a Lulu? Bem, a Lulu é quem vos narra essas memórias. Não apareceu no Jornal Nacional, mas escreve nos bastidores: longe das câmeras, perto do coração.


Comentários


  1. Oi Lu,

    quando entro no seu blog não quero mais sair rsrs, mas por outro lado seu blog é tão forte que agora estou até com medo de fazer um, pois não sei se sou capaz! Bjos!!

    Rogelma.

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  2. Ai, não me avisou que tinha texto novo! rs

    Dorei! Que bom ter news do povo! Que clarividência a de vcs, hein!

    Só a Patty aqui, a calada, é que foi prá profissão errada! rs. Tenho que ser a professora falante. Professor que não fala tá com defeito né? Tem que trocar. Então boto minhas pilhas e vou. Depois as tiro, com alívio. Meus alunos não falam que sou calada, mas sim: A professora é tão calminha! rs.

    Só lendo o seu texto para me distrair enquanto fico há uma hora pendurada com uma operadora de telemarketing ao telefone, que só sabe repetir com seu sotaque paulista: Obrigada por aguardar... aff... acho que a moça ficou impressionada com a minha educação e paciência viu, graças a leitura do seu texto...

    Tá vendo, seu blog também é de utilidade pública, não me estresso mais na vida! rs

    Bjs
    Patty

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  3. Oi LU,

    Adorei como sempre!!! Realmente os momentos que passamos juntos descobrindo e analisando as possibilidades da vida foram inesquecíveis!!! Adoro lembrar do Cacau filosofando e esnobando o resto do grupo, se não me engano foi ele quem começou a questão do quarteto que é um trio falando que eu não valia nada !!!! A Dedéia sempre cheia de idéias e ideais!!! Você sempre romântica e voltada para as letras, você adorava quando o tempo passava e estávamos envoltos em histórias, fossem elas reais, imaginárias ou uma combinação bem dosada das duas. Eu como bom representante do signo de peixes, viajando, vivendo num mundo criado pela minha imaginação, onde tudo estava bom e todos eram amigos e podiam viver felizes apesar das enormes diferenças!!!

    Abraço,

    Marco Antônio.

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