Os fantasmas de Scrooge de cada um de nós

Os fantasmas da infância nos assombram ao longo da vida. Basta a gente baixar um pouco a guardar e lá estão eles a nos incomodar. Bem que a terapeuta disse que pai e mãe nunca morrem. O corpo se vai, mas seus espectros rodeiam a gente para o bem e para o mal.

Por isso é melhor que você resolva perrengues, diferenças, incomunicabilidades várias com eles enquanto eles podem dialogar com você. Depois, só restam mesmo as imagens que teimam em repovoar a mente em momentos de fragilidade.

Passei o domingo pensando nisso depois de consolar uma velha amiga. Realizada como profissional e mãe, ainda é assombrada pela menina órfã que foi, “num mundo de migalhas”, como definiu. A criança da gente compreende a família de um modo tão particular. Nem sempre certo, nem sempre verdadeiro, mas real para a cabecinha infantil. E assim a gente cresce, com essas percepções fantasmagóricas angustiantes.

Bem sei desse sentimento de inadequação. Costumava definir minha posição no seio familiar como a de uma paraquedista que havia perdido o local do pouso. A cegonha, com certeza, havia me entregado na casa errada porque ninguém ali parecia ter tempo ou disposição para uma criança. Todo mundo ocupado com seus próprios afazeres. “Cresce logo, menina!”

O quanto é verdadeira a minha sensação? O quanto é real para a minha amiga o fato de acreditar que ela e seus irmãos importunavam ao invés de alegrar? Difícil... Mas nada que uma boa terapeuta não ajude. Elaborar, por pra fora, chorar, reconstruir as memórias por um viés menos infantil, menos passional.

A gente precisa apaziguar aquela criança abandonada lá de dentro. Aquela criança ferida, aquela criança patinho feio. Ela precisa ficar quieta, tranquila para que não nos assuste com seu choro e dor. Afinal, nós vencemos as adversidades e estamos aqui, mulheres guerreiras do bom combate. Somos cisnes que não sucumbiram aos vícios, loucura ou indeferença.

Mas é mesmo patético como essa criança insegura reaparece mesmo quando achamos que está tudo bem. Hoje mesmo escrevia uma mensagem para o primo e ,de repente, a amargura da garota feiosa da infância tomou minha mão e soltou: “coitada da fulana, emburreceu e enfeiou...”

O trauma de crescer cercada por primos bonitos e amparados pelo amor materno e paterno diário e constante. Oferendas que eu não tive. Percebi que era pura inveja, pura criancice da minha criança que ainda insiste, aos 41 anos e depois de algumas terapias, em retornar vez ou outra para me chatear.

Sei que esse texto parece uma apologia ao processo terapêutico, mas realmente acredito que as pessoas podem se beneficiar, e muito, da colaboração desses profissionais. A gente que é amigo ajuda, ouve, dá conselhos. Yoga faz muito bem, espiritualidade também. Mas nem sempre conhecemos os mecanismos para soltar as amarras daquele fantasminha revoltado e raivoso que desestrutura e machuca nossas relações vida afora.

Sei que boa parte das pessoas acha que psicólogo e psiquiatra são coisas de maluco; é dar bandeira da fraqueza de espírito, gastar dinheiro à toa. Besteira. Um terapeuta bamba é um grande investimento em prol do equilíbrio pessoal.

Atualmente eu só me arrependo de não ter começado meus encontros com Freud, Lacan, Jung, Nise da Silveira, Andréa Moscovo, Ângela Lins, Ana Cristina Curvelo e Pedro Paulo Curvelo antes. Com eles aprendi que “quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda.”*

*Frase atribuída a Carl Gustav Jung

Comentários

  1. Concordo com vc, Luzita. Quando o investimento pessoal é honesto e o profissional bom, vale muitíssimo à pena. E, como dizia uma conhecida, é igualzim queném faxina: de vez em quando faz falta e a gente volta... bjus Isa

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  2. Texto consciente que me vem às mãos no exato momento em que estou convivendo com alguns fantasmas bem presentes em minha vida. Pai e mãe, prá mim, um martírio, essa é a verdade.
    Ontem estava conversando com minha sogra e ela dizendo que está fazendo terapia, mas que não tem vontade de continuar porque está numa fase tão boa, já chorou tudo o que tinha que chorar e não está afim de remexer nas histórias passadas. Dei forças prá ela continuar e falei da importância da terapia, mesmo quando tudo parece muito bem. Vou mandar seu texto prá ela, que disse tudo!!!
    Bjs
    Patty

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  3. Acho bem importante a terapia para fazer aquela limpeza interna,quando a gente, não consegue alcançá-la.Penso que deve ser uma decisão muito consciente, e o profissional bom,pois já vi muita gente, sair surtada de alguns encontros desses.Por isso penso que primeiramente deve ser esgotada todas as possibilidades de autocurar-se, autoanalisar-se, pois por experiência própria, já acessei através de meditação, de prática de auto estudo , muitos nós, e já botei muito fantasma pra correr sózinha.Mas acredito sim, que para algumas pessoas possa ser muito bom.
    Beijo...Namastê!
    Cynthia

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  4. Loo, muito bom! Uma frase feita: autoconhecimento é fundamental. Com um bom profissional, de preferência, e com muito amor por si mesmo também, que nunca é demais. Acho que é mais uma questão de acolher a criança que todos fomos, cada um com seus fantasmas, mais do que deixá-la quieta, mas é tudo isso que você disse junto: terapia para desamarrar, espiritualidade (cada um com a sua, até com a falta dela) pra dar sentido, trabalho no corpo pra conscientizar ou harmonizar ou todas as anteriores(se sentir bonita também vale), enfim, vale buscar tudo pra ser mais inteiro e viver a vida mais amorosamente, principalmente com a gente mesmo. Amor é de dentro pra fora, afinal, não é? Beijo grande pra você, amiga, pra Luluzinha também, e pras amigas que estiverem por aí também com suas crianças.

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    1. É isso aí,aMáda! Grata a você por ser minha amiga de fé, irmã, camarada. E também por me apresentar Pedro Paulo, que por sua vez me apresentou Ana Cristina. E também, claro, por promover o encontro com a majestosa Alins, a Ângela, que é uma força da natureza a nos guiar.

      Beijocaspipocas!!

      Lulupisces.

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  5. Lu querida, também tenho os meus fantasmas. Recebo, às vezes, algumas visitas, mas as terapias, os livros, os filmes, os amigos têm me salvado.

    Bjs,

    Suelene.

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    1. Todos temos, doce borboleta Su! Mas que bom que você está se salvando da melhor forma possível.

      Beijimdipudim,

      Lulupisces.

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  6. É Lulu, caríssima irmã,

    Gostei de seu blog, como sempre. Mas aí vai algumas reflexões pessoais (nem boas, nem más, apenas minhas).

    No caso especial de nossa mãe, nunca a culpei por nada que dela não me veio, quando precisava. Como poderia, uma mulher de 34 anos, viúva, sem trabalho e estudo, com 7 filhos menores, poder se virar para criar a imensa prole, manter o patrimônio e ainda de quebra, colocar todos nós no colo, lamber as crias todos os dias ?
    Lembre-se sempre que éramos todos crianças e adolescentes e você, a mais carente, por ser tão pequena, tão frágil... (o Rica com 16 anos até você com 11 meses !)

    Impossível ! Inumano ! E depois, a minha relação com ela sempre foi tácita. Assim como com o meu pai, quase sempre duro e muito exigente. Eu sentia e sabia que eles me amavam, daquele jeito e pronto, me bastou. Sempre foram e serão minhas maiores referências humanas (força, garra, luta, determinação, brilho, luz, etc.).
    Para mim ela foi demais!!! Eu por muito menos, quase desesperei, quase pus fim a minha vida (eu repeti a história de minha mãe, com a mesma idade, só que em uma "versão mais leve", se é que isso pode ser dito ou medido... acho que até hoje não me recuperei do tombo...)

    Quanto esta questão de terapia, eu particularmente, tenho um péssimo defeito. Gosto de resolver minhas mazelas sozinha e ainda, de quebra, não gosto de atribuir a ninguém as razões de minha desdita, de minhas escolhas pessoais, quaisquer que sejam elas... Deixei de ler, porque quis, pois o tempo a gente faz, por exemplo.

    E a nossa "vista de fora", sempre é uma visão sem isenção e parca. Besteira julgar os outros por suas decisões ou modo de vida. O que nos parece burrice, pode ser meio de vida, sobrevivência. E existe sabedoria aonde não existe estudo,academia. O que nos é feio, é encanto para outrem... E graças a Deus é assim: Plural, dinâmico, diverso, intenso, banal, vulgar, inculto e por isso mesmo, não raro, essencial ... Temos que ter cuidado com a nossa soberba, com a nossa pretensiosa "cultura"... A minha, nem a tenho e por enquanto não sinto falta dela. Estou me aproximando novamente dos livros e outros meios, mas sem me impor essa "necessidade" porque a sua "falta" nunca me tirou a sensibilidade/acuidade humana e, especialmente, a humildade, aquela que me faz ver o que importa mesmo é a pureza d'alma, os bons propósitos, o perdão, a generosidade, a fraternidade, a solidariedade, o doar-se um pouco, a via de "mão dupla"....

    A verdade é que há "razões" para tudo, sejam elas racionais ou não. E quem sabe de si é si mesmo. E precisamos respeitar as escolhas alheias.

    Nós mesmos é que criamos as nossas amarras e atrelamos a nossa sorte a outrem e depois nos queixamos quando o resultado não nos satisfaz ou nos causa dor.

    A exata medida: o que é isso, aonde a encontramos, como a usamos, como não ferir a nós mesmos e aos outros?

    Taí, o negócio é viver, se possível com intensidade, não passar em branco. E se cair, levanta e sacode a poeira, se errar peça perdão, se sofrer chore e aprenda a sorrir de novo, até que esta vida cesse e vamos para outra esfera, sabe-se lá qual seja.

    Gosto do poeminha anônimo abaixo, que li uma única vez num mural do "Elefante Branco", quando vazia o 2º grau e por sua profundidade, nunca o esqueci:

    " Haverá um dia em que perderei de vista esta terra.
    No entanto a estrela fará sua virgília noturna e a manhã nascerá como sempre.
    Quando penso neste fim, o insignificante torna-se precioso e é preciosa a vida mais humilde."

    Grande abraço, irmã do coração. Vejo com muito carinho e gratidão o cuidado que tem comigo agora e sempre.

    Nena.

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    1. Ei-la, bons ventos a tragam, hermana!

      É sempre bom ler suas reflexões. Só alguns detalhezinhos bobos: mamãe tinha 34 anos quando ficou viúva. A sua idade mesmo, ou perto. Você tinha 35 anos quando o Jô morreu, né? Eu fiquei tão impressionada com essa coincidência trágica que achei que o Bernardo também morreria quando eu completasse 34, 35 anos. Achei que ficaria viúva com um neném recém nascido para criar... Veja você que coisa, não. Ainda bem que a maldição não era mesmo uma maldição, só triste fatalidade.

      Como você mesma disse, cada um é cada um e sendo assim, tem necessidades diferentes. Talvez para você bastasse ter os pais do jeito que foram. Mas acho que eu precisava de um pouquinho mais de deferência... Deve ser o meu lado diva.:)

      Racionalmente, entendo toda a situação da mamãe. Mas a criança não é racional. E por isso é válido trabalhar com as expectativas dessa criança lá dentro. Todo mundo tem a sua. Você também. Ela é assim tão bem resolvida mesmo? Que bom!

      Mas não tenho mágoa da mamãe, não pense isso. Resolvemos tudo aqui mesmo, nesse plano. Mamãe foi maravilhosa a partir do momento em que fiquei adulta. Foi a melhor mãe do mundo: alegre, atenciosa,companheira, leve, avózona. Minha criança está em paz com ela. Está em paz com meus irmãos que não foram muito irmãos.

      Mas nunca é tarde para criar laços realmente efetivos e afetivos. E a nossa aproximação verdadeira é a prova disso.

      Beijo e te amo,

      Lulupisces.

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  7. oi Luciana,

    é mesmo, a arte de escrever parece fácil para você!

    quem sabe você começa o seu livro já!!!!!

    muito bom saber que faço parte do seu processo de retorno

    a si mesma...

    bjos,

    Ângela Lins

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  8. Adorei o texto, mandei para a minha analista!

    Bjs,

    Ana Cristina.

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  9. O seu texto é ótimo, "na mosca". AMEI!!!

    Eu me vejo aqui: "A gente precisa apaziguar aquela criança abandonada lá de dentro. Aquela criança ferida, aquela criança patinho feio. Ela precisa ficar quieta, tranquila para que não nos assuste com seu choro e dor. Afinal, nós vencemos as adversidades e estamos aqui, mulheres guerreiras do bom combate. Somos cisnes que não sucumbiram aos vícios, loucura ou indeferença."

    Eu só fui me livrar dos meus fantasmas com quase 60 anos.

    Bjs,
    Cristina.

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  10. Muito legal o texto. Vc tem o contato do Dr. Pedro Paulo Curvello? Obrigada

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    1. Oi anônimo/a comentarista, obrigada pela participação!
      Não tenho ido ao Dr.Paulo ultimamente (meu bolso agradece!!:)), mas tenho o contato dele: 9978-9852 e 8162-8055.

      Abreijos,

      Lulupisces

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