Conquista ou prisão?

Quer saber? Ficava de boa nessa vida de dona-de-casa, gerenciando o lar: o que fazer para o almoço, as frutas que estão faltando, buscar a pé os meninos na escola... Acordar , tomar café como gente, sem pressa. Correr pelas calçadas arborizadas da Asa Sul, uma ducha, sentar na frente da tela e escrever contos, histórias, crônicas, frases.

Vinte dias de licença e eu não pensei nem um momento sequer na minha realização profissional. No que eu estaria perdendo em não ir diariamente para o trabalho. Não senti falta de ser jornalista ou publicitária porque, afinal, eu gosto mesmo é de escrever e, para tanto, não preciso de rótulos.

Estou lendo um livro sobre a psiquiatra Nise da Silveira. Bacana. A mulher era, perdão do trocadilho, muito doida! Uma feminista naqueles tempos duros. Rabugenta e ditatorial um cadiquinho assim. E tinha profunda aversão à burocracia da máquina estatal, contra a qual lutou incansavelmente e, ainda bem, conseguiu colher frutos notáveis com a introdução da revolucionária terapêutica de tratamento que humanizava os pacientes mentais.

Qualquer semelhança comigo não é coincidência. Serviço público e eu: não pode haver duas forças mais antagônicas. É fato. Talvez se eu fosse realizada na carreira não diria que ser dona-de-casa é viável na evolução do feminismo. Mas, pensando bem, acho que diria mesmo assim. Essa vida que as mulheres de hoje estão levando é insana demais. O que adianta ficar provando para todo mundo que a gente pode? À custa de quantas culpas, depressões, esgotamentos, falta de tesão, peles sem viço?

Genial foi a Nise, que não teve filhos. Para a mulher que tem pretensão intelectual, melhor não tê-los, para não se ver nessa neurotizante divisão de amores. Genial também foi a vizinha da minha infância, Dona Maria Inês. Mulher doce, culta, bela... De pele tão alva que parecia ter saído de um quadro da renascença. Ela dedicou boa parte de sua energia vital e inteligência como dona de casa. Decidiu chocar e criar os quatro filhos reinando absoluta em seu lar.

Bom para mim, que vivia por ali, como se filha dela fosse, sorvendo daquela maternidade plena. Ela dava aulas de inglês e francês para a gente. E ainda aprendi a bordar alguns trapinhos. Na casa da Dona Maria Inês eu recebi um apelido divertido: carroça sem breque. É que a minha gargalhada, ela dizia, parecia uma carroça sem breque desembestada ladeira abaixo.

Dona Maria Inês só decidiu trabalhar quando os filhos alcançaram a adolescência. Voltou a dar aulas de inglês e francês no Centro Interescolar de Línguas. Mais tarde, conseguiu passar no concurso para o cargo de consultora da Câmara dos Deputados, onde se aposentou.

Quem me dera poder ser a Dona Maria Inês hoje. Não prescindir do meu salário. Não ter sido mãe tão tarde... Abriria mão de qualquer emprego só para poder ficar reinando, plácida, no meu apartamento. Curtir os filhos sem hora marcada. Poder vê-los acordar e sair para a escola; acompanhar o crescimento gradual de suas descobertas, sem atropelos e impaciências provocados pelo cansaço da rotina atabalhoada.

A amiga Lara diz que adora o sábado porque é o único dia da semana em que pode se dedicar integralmente à filha. É a realidade amarga que nenhum feminismo previu quando se impôs como “conquista”.

Comentários

  1. Bem, querida Carroça Sem Breque, realmente suas opiniões são polêmicas... ficar sem trabalhar? ser dona de casa? abrir mão da minha independência financeira? hummm... mas, lembrando bem, senti algo muito parecido quando fiquei em casa amamentando a Ana, cuidando do quintal, tomando sol enquanto passeava com o carrinho de bebê pelas manhãs... lembro que tudo me pareceu muito simples e bom: tudo se resumia, afinal, a ser uma vaquinha leiteira. Olha, que me perdoem, mas foi assim mesmo e foi delicioso. Mas também passou, viu? Depois de algum tempo, estava louca pra voltar à vida insana do trabalho, exigir um pouco mais dos meus neurônios, botar um saltinho e um batom... enfim, nunca nenhuma experiência é completa, né não? Bom é ter alternativas! bjão Lu!!!

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    1. Ué, mas quem disse que eu iria ficar dentro de casa feito uma mocoronga descabelada?:) Claro que iria por meu batom e meu saltinho e não perderia minhas exposições, teatros, cinema... Ser dona de casa não é virar tatu, né?
      Volta à vida insana do trabalho? Sinceramente, BelBel, não tenho mesmo a menor vontade de viver isso que eu vivo todos os dias.
      Mas concordo que viver sem o "nosso" salário é estranho. O ideal era ter uns frelas para ter uma graninha voo-solo.

      Besos,

      Lulupisces.

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  2. Bom dia Lu!

    Espero que esta semana passe logo. Isto aqui está uma loucura!!! Todos viajando e acaba sobrando para as secretárias... Enfim, sobrevivemos!

    Bjs,

    Leila.

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  3. Ô minha linda...
    Seus textos estão cada vez melhores! Sinto que a verdade explode em palavras, lembranças, citações, seu texto emociona... Somos mesmo prisioneiras da necessidade, mas não somos tão equipadas como previam as feministas... mulher deve trabalhar um período, não é como homem... que mico das feministas quererem direitos iguais, nós deveríamos reivindicar direitos femininos... Somos doidas e ficaremos velhas muito cedo... envelheceremos antes do tempo... Também estou com essa sensação de que a vida está passando e precisaria passar mais tempo comigo mesma... bjos

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    1. Querida AnaLu,

      obrigada mesmo! Fico contente em receber crítica positiva de alguém do seu quilate. É também acho que deveríamos trabalhar apenas meio período mesmo. Cinco horas no máximo. E ter o resto do tempo para lamber as crias a fim de que elas crescessem felizes e mentalmente sadias.

      Um beijo!

      Lulupisces.

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  4. Uma coisa que sempre notei em parte do discurso feminista - o mais primitivo, é bom dizer - é a reserva de mercado que fazem/faziam. Chegam a pender para o maquineísmo se esquecendo que discursos são confrontados constantemente com a realidade de cada pessoa. Feminismo em bloco é só mais uma das alternativas ao patriarcado. E é válido pras dilmas, pras donas-de-casa, pras putas, pras submissas, pra os homens, hétero ou homo, por que não? Mas como a Izabel bem disse, nenhuma experiência é completa. Precisamos contribuir com a construção da nossa, usando as tecnologias da existência da maneira mais apropriada a cada situação; do contrário, estaremos sendo perversos. Uma mulher pode escolher ser sexualmente submissa? Acredito que sim. Pode escolher ser dona de casa? Também acredito que possa haver casos de escolha consciente. Desde que esta escolha esteja dentro de um contexto em que não a coloque como única possibilidade. Em um dos episódios de Sex and the City, a Charlotte diz pra Miranda que vai largar a carreira na galeria em que trabalha para 'cuidar do casamento'; no que Miranda dá na lata: "no final vai sobrar somente cerâmicas feitas a mão caso o seu casamento acabe".

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    1. Poizé, Lulu, Má, o lance é que esse "poder de escolha" também é muito relativo, uma certa falácia. Tá, eu posso escolher pedir exoneração amanhã. Sim, posso. Mas a arquitetura familiar, meu "contrato" conjugal prevê que eu também despeje na minha casa a minha "contribuição para o nosso belo quadro social". Acabou que as mulheres da minha geração estão presas entre a relização feminina da maternidade e a relização feminina da emancipação total da inteligência e da capacidade criativa. É um dilema cruel, pois as duas vontades são legítimas e igualmente fecundas e importantes.
      Mas sabe que eu não ficaria envergonhada de ser sustentada pelo Bernardo hoje em dia? Pode ser que ficasse daqui a pouco, nunca se sabe, mas não me sentiria diminuída nessa fase da minha vida. Não que eu não queira criar, usar meus talentos. Mas se esses talentos não dão dinheiro, apenas prazer (como escrever nesse blog), o que eu posso fazer? Então não existe muito esse lance de "pode de escolha". Você está na máquina e ela, de alguma forma, te consome. Só se eu decidisse, a partir de agora, viver numa cabana, sem viagens internacionais, sem roupinhas legais, sem cafés deliciosos. Cortar o padrão de vida pela raiz e manter meus filhos na escola pública até a universidade. Talvez assim eu pudesse abrir mão do quesito salário. Algo que não depende só de mim, a partir do momento que eu coloquei duas crianças no mundo. É, a coisa é densa!:) Obrigada pelas participações tão pertinentes!!!

      Abreijo,

      Lulupisces.

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  5. Adorei a expressão direitos femininos da AnaLu. E ainda acho que é uma conquista, porque o legado maior foi o direito de escolha. Bom é ter alternativas, como disse a Isabel. Ainda que seja limitada essa escolha, e a consciência que temos é relativa, afinal, muitas vezes nem temos consciência de nós mesmos e vamos seguindo a vida no automático. Ainda assim, poder escolher é uma dádiva. Eu queria mesmo menos tempo no trabalho e mais tempo para acompanhar meus filhos, mas aí só em outro trabalho, e essa perspectiva não tenho/não quero agora. Quero a convivência que tenho fora de casa, não quero vida doméstica o tempo todo não. Aprender a conciliar tudo isso e a me organizar é meu desafio neste momento. Beijos!

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  6. A minha história começou cedo em relação filhos/casa.Tive os 3 com 18,19, e 23anos...só estudava.Foi um tempo em que curti muito, ficar em casa,cuidando das crianças, de sua alimentação, brincando com elas,ajudando em suas tarefas escolares.Curto muito lembrar desses tempos, foi realmente uma benção,pois a vontade e necessidade de ir à luta,ganhar a minha grana veio bem mais tarde, quando o meu caçula já tinha os seus 4 anos.Quando então...arrumei o meu primeiro emprego" servidorapúblicadoministériodafazenda ,uau foi a glória!Passado os anos, o tédio tomou conta de mim.Decidi após muita reflexão(correndo em meditação dinâmica) coragem,e porque não,fé ,de que nascemos com alguns dons e talentos, e que é só direcionar uma energia, que pode ser a da vontade,do querer é poder e meter as caras e foi o que fiz.Após 13 anos de serviço, no primeiro PDV (Programa de Demissão Voluntária)da história, lá estava eu.E a partir daí, claro já tinha uma idéia do que gostaria de fazer e fui literalmente à luta.Fiz cursos na área de terapias corporais orientais,tive o meu espaço, foi a sememtinha plantada e cultivada
    para florescer nesse caminho sem volta que hoje me encontro, como instrutora de yoga, o que mais amo fazer, muito feliz...
    Lu realmente, não te enxergo como funcionária pública e nem dona de casa, sim , como você mesma colocou em seu texto sempre tão profundo, que nos remete às reflexões mais densas até as mais sutis..."acordar tomar café como gente sem pressa...sentar na frente da tela, escrever contos,histórias, crônicas e frases."Assim te imagino, muito feliz, deixando que esse talento,esse potencial em você se sobressaia, acesse o seu potencial Divino Criador, ele saberá te orientar.Beijo grande...Namastê!
    Cynthia

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  7. Bem Luciana,

    eu tive 20 dias entre dezembro e janeiro para viver como dona de casa. Só que com um "pequeno" detalhe que me fez detestar a empreitada: sem empregada.

    Curtir a casa, a vida, a filha, o marido sem a correria do dia-a-dia pode até ser o máximo, desde que eu não tenha que colocar o lixo para fora (argh!), a roupa na máquina, cozinha, trocar as camas, limpar os banheiros, varrer, lavar louça (que nunca acaba!) etc. etc. etc.

    Apesar de não ter ojeriza ao serviço público, eu também viveria numa boa como dondoca. E iria ser uma dondoca super culta. Faria um monte de cursos, iria a teatros, assistiria a ballets...

    Ai... ai... ai...

    Quem me dera....

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    1. Mas é claro que não para ser dona-de-casa-vida-dura, né?;) É pra ser dona-de-casa-rainha-embonecada:), com uma super empregada doméstica do lado, fazendo tudo o que a gente não quer mais fazer.:) Também fiquei 20 dias sem empregada nessas férias. É avassalador!!

      Por isso trato a minha super Ju muito bem! Pago um ótimo salário (dentro das possibilidades e acima do mercado)e estou sempre a lhe agradar com bons presentes (para os filhos dela idem). É o mínimo que posso fazer para alguém que facilita a minha vida imensuravelmente.

      Quem sabe um dia, Larinha? A gente juntas dondocando por aí...

      Beijocas,

      Lulupisces.

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  8. Também vi um filme no qual a protagonista, com um lindo bebê no colo, dizia ao marido que, quando estava no trabalho, ficava só pensando no filho, na vontade de estar com ele, acalentá-lo, protegê-lo, curti-lo e, quando estava com o bebê, sentia falta do trabalho, da produção, da realização profissional. Difícil, hein?
    Eu me sinto muito bem trabalhando... no momento estou tentando me harmonizar com a minha profissão, vendo o lado positivo. E um lado positivo mesmo é o de não ter chefe no pé me enchendo o saco, de ter liberdade para fazer o que eu achar que devo, dentro de um limite, claro. Além de tudo é um trabalho criativo. Bem, mas quanto ao salário... huuuummmm, ó!

    Bjs
    Patty

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  9. Oi LU!
    Saudades! Mesmo que a gente nunca tenha se visto, nosso texto nos reconhece, ligação estranha essa...
    Aliás, o texto que você escreveu ontem tem muito das minhas ansiedades atuais, estou chegando aos 48, a carroceria está boa, pneus novos, boa estabilidade nas curvas, modelo econômico...
    Contudo as canaletas internas, a potência do motor me preocupa...
    Não pego mais de primeira e fico feliz quando o sinaleiro fecha para ficar um pouco paradinha...
    A única estrada em que tenho pensado é aquela que desagua em alguma praia deserta, algum monte de capim em que eu possa me esconder das modernidades, das feminices que nos impuseram esse ritmo doido...
    É fato que o mundo está um lugar muito desconfortável para todas as categorias: homens, mulheres e crianças... achei ótima a frase pintada em um muro "parem o mundo que eu quero descer"
    Penso que o capitalismo não tem vaga para pessoas felizes, a classe dominante morre de tédio, depressão, angústias, drogas e medos. A classe trabalhadora morre esmagada para sustentar os remédios e devaneios da classe anterior. (Rousseau já falou disso antes...)
    Estamos desconfortáveis...

    Bjoks!
    Ainda não pensei em que fantasia usar no carnaval... tava pensando numa de samambaia... ia passar 4 dias com cara de paisagem... ahaha

    AnaLu.

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  10. Oi Luciana,

    Ser dona de casa as vezes parece uma prisao e foi assim para mim por muito tempo. Mais agora que as meninas estao indo para a escola eu me sinto a rainha do lar. Tenho muiiito tempo so para mim. Sou dona do meu dia! e tem mais: Ontem teve festinha do Valentine's day na escolinha da Patricia. Quando a Patricia me viu dentro da classe dela foi um momento que nunca vou esquecer. O sorriso que ela me deu, o olhar que ela trocou comigo falou tudo e isso minha cara eu nao troco por salario nenhum!!!
    O importante eh a gente saber reconhecer momentos felizes, seja em casa ou no trabalho.

    Beijos, Eve

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