Licorosas





Cheguei ao café filosófico promovido pela Nova Acrópole num estilo leonino para uma pisciana: puxei a mesa, o tampo era solto e plaft: lá se foram o vasinho de vidro com o lindo antúrio vermelho (laceleaf, poético como a ocasião pedia), o celular e o meu livro da Cecília Meireles (que descobri ser uma edição rara) para o chão, mesclado a incontáveis cacos e água.

Atraí a atenção que deveria ser da palestrante. O evento atrasou alguns minutos por minha causa. Eu, que venho passando por tantos micos em português e inglês, agachei  e agradeci por agora ser novamente flexível após meu super tombo lavando banheiro em NY (o acidente quase me custou os ligamentos internos de ambos os joelhos). Reuni os pedaços de vidros maiores no copo de plástico sem intimidação. Não liguei para a plateia que assistia àquele papelão. Incorporei meu papel resignada e confiante. Amadurecer, afinal, é cagar e andar (de cócoras, preferencialmente).

Por certo não foi a melhor maneira de me concentrar para um momento metafísico de grande monta. Cecília e seus olhos verdes de ressaca como os do gato que fotografei dias atrás. Seria dissimulada? Os textos sobre ela apontam a fragilidade. Não acredito. De delicada só a aparência mesmo. A alma era densa, licorosa. Aos 25 anos escrevera aqueles poemas que deixou escondido: reflexões acerca da existência nessa vida que se morre todos os dias e se refaz todas as manhãs.

Ganhei o livro da amiga Márcia há tantos anos (ela mesma se esquecera do fato). Resgatá-lo da estante e redescobrir aquela dedicatória foi encantador. Lembrei-me, de imediato, de um programa do canal Arte 1 chamado “Eu te dedico”. Márcia e eu daríamos um episódio charmoso calcado num começo inusitado: a construção de uma amizade com a colega da hidroginástica mais velha, mãe de dois filhos, quando a maternidade ainda era um horizonte distante. Sem dúvida um modo de acreditar que a Via Láctea tem planos bacanas pra você. De sentir o que Márcia sempre ofertou: a fé inquebrantável num pai onipresente que só quer o seu bem.




Para a menina órfã seria um sentimento reconfortante: ter um Deus-Pai, todo poderoso. Eis a conexão provável com essas mulheres que me presenteiam com a religiosidade. Ao lado delas estou acolhida e instigada pelo eterno mistério da crença que não tenho. Numa análise simplista, mas não menos verdadeira, as amigas de fé são retalhos da minha madrinha, outra mulher fundamental e benta a apontar caminhos ainda não trilhados.

A palestra começa e são tantas as conexões. Meu cérebro borbulha. Como disseram a agora amiga editora: só piscianas são capazes de alinhavar coisas e cenas que parecem incompatíveis. E outra amiga, 'Morgana" Mônica (não por acaso também de Peixes): só as piscianas se lembram de tantas bobagens com tamanha precisão de detalhes.

A cada cântico, o espanto; a lágrima despudorada. Reler a obra com a bagagem de hoje me fez sacar os poemas na amplidão de espiritualidade que Márcia, imagino, já experimentava naquela época. Não evoluí nas questões de fé, todavia agora sou senhora de mais fantasmas e desilusões, portanto, mais serena e resiliente diante da impermanência e do imponderável.   

E é disso que trata “Cânticos - Oferenda -  Teu nome é liberdade”. Enquanto alguns amigos dizem não haver livre arbítrio, Cecília crê que somos livres para escolher uma “alma infinita de tudo”. Liberta dos fardos do corpo, das mesquinharias, das vaidades e orgulhos, ela  (e nós) renunciamos ao mundano (prisão) para nos expandirmos no espiritual, ilimitado.

É o nirvana, estado de contemplação e redução das superficialidades. É calar e ouvir os sons do universo que não conspira para o bem ou mal, pois apenas é e está. É se dar menos importância como indivíduo e maior valor ao conjunto de números complexos que englobam todos os outros: naturais, inteiros, racionais e reais.

Compreender que todo o conhecimento é uma pirâmide que se encontra lá no cume pontiagudo que cutuca, espeta e desperta:

“O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos…
Enganados…
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…”

(Cecília Meireles)


Comentários

  1. Não pode ser mera coincidência que eu esteja lendo esse texto tão lindo numa manhã de domingo chuvoso... certamente não é.
    Me fez pensar no eu inferior e no eu superior que ando estudando ultimamente. E parece que um caminho pra essa busca, da expressão-expansão do eu superior, é através da espiritualidade.

    Obrigada, Lu.

    Eu posso compartilhar na página da Círculos Psicologia no Facebook?

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  2. Adorei! Quando o Rodrigo me "apresentou" vc ele disse: Ela é piscina como nós e do jeito que a gente gosta.
    É uma coisa que só nós dois entendemos, mas é exatamente assim. Gosto demais da Cecília. Seus relatos de viagens são maravilhosos!

    Andreya

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  3. Lindo! Aliás, tudo o que vc escreve, Lu! Bom, eu achei que vc reagiu muito confiante em resgatar aqueles cacos de vidro sem se preocupar com o mico. Vc estava presente, tão compenetrada até acontecer o incidente. Sua reação foi pelo reflexo, pelo impulso de catar os cacos.

    Leila

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  4. Adorei seu texto como sempre.

    Cynthia

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  5. Gostei! Lindos versos!

    Carmem Cecilia

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  6. Adorei tudo, desde a fase estabanada, o cenário do café filosófico e, lógico, Cecilia Meireles.

    Renata Assumpção

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  7. Eu, como uma boa sagitariana, sou mestre nessas situações. Acho que já até me acostumei e acabo fingindo demência. KKK!

    Anna Luiza

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  8. Risos....Caraca! A mesa no chão!
    Tenho esse livro. Todos os poemas são magistrais. E o giro da história do post tb foi!

    Rê Osório

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  9. Queria estar lá pra ver se você não se abalou mesmo com a bagunça.

    Valdeir Jr.

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  10. Boa noite, Luciana. Agora que li 'A vida pede um pouco mais de alma' . Título sugestivo,. A gente vai envelhecendo e percebendo que existe algo mais...

    Coincidência: ontem e hoje estive dando uma arrumada em lembranças guardadas e encontrei uma que ganhei no batizado de Bernardo. Dei uma limpada e pensei 'vou dar para Luciana colocar no altarzinho dela'. Engraçado, né? Parece que fui inspirada pelo q vc escreveu.

    Paula Mello

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  11. Encantada. Parabéns, prima!

    Monise

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  12. Adorei o passeio que seu texto faz, Lu! Desde o destrambelho da mesa no chão, passando pelos olhos verdes de ressaca de Cecília Meireles, o conforto recebido da religiosidade das amigas, e, ora veja, o nirvana! “Estende sobre a vida/Os teus olhos...”
    Lindo texto, Lu!
    Francis

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  13. Num inspirador passeio de bicicleta no colorido e concorrido eixão, entre um gole de água de coco e outro, me deliciei com seu texto! Uma mistura gostosa que inclui mundos que conheço. Nova Acrópole é minha casa, Cecília uma surpresa encantadora, uma filósofa nata e inspiradora. Obrigada por participar da minha deliciosa manhã, Lu!
    Feliz dia!

    Maria Aparecida

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  14. muito bom! Saudações netuno/plutão escorpianas,

    Romulo Andrade

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