A eterna sombra do ataque




BAJO LA LUNA

Uma mulher caminha só
nas ruas de Porto Alegre,
o coração nos tímpanos.

Una mujer camina en las
calles de Buenos Aires.
Solo la luna la ilumina.

Uma mulher caminha na rua.
O medo dá vida às sombras.
De qualquer arbusto uma ameaça.
É século 21.

Una mujer camina.
Ella no desiste.
Las mujeres siguen.

Uma mulher, na rua.
A caminhada da mulher
ainda é um susto.

(Maria Alice Bragança)


Sempre caminhei sozinha. Ainda que grávida, barrigão, estava sozinha. “Estou te sentindo só”, alertou a terapeuta há alguns anos. Não estranhei: sou alma solitária. Loba que reconhece a matilha, porém comunga com a solidão.

Desde pequena percebi que seria como aquela camiseta que vi numa postagem do Instagram: “A vida é uma sopa e eu sou o garfo”. Hoje, sem dramas, não me aflijo. Apenas elejo as prioridades para escolher sopas cremosas, com algum naco de carne ou queijo. No mais, as engrenagens irão, inevitavelmente, escorrer pelos vãos. Não pesco, dado que sou peixe.

Quando li o poema acima, me lembrei de duas cenas. A primeira, óbvia, da angústia e do medo de fazer caminhadas-solo pelas cidades brasileiras. Aliás, até nos EUA experimentei momentos de tensão por ser mulher sozinha numa trilha.

Que duro é para as fêmeas a eterna sombra do ataque a nos fazer companhia. Ou seja: nunca estamos realmente a sós como gostaríamos. Uma mulher desacompanhada precisa acionar o modo-sobrevivência no máximo da capacidade. Qualquer sinal de homem no meio do caminho pode ser uma ameaça de cantadas indesejáveis ou de coisa muito pior.

Uma vez, caminhava na linda trilha da Bronx River Pathway e de longe avistei um cara parado na calçada trajando moleton dos pés à cabeça com capuz. Estanquei a uns 500 metros dele sem saber o que fazer. Gazela que fareja o tigre camuflado na paisagem. Se bem que ali não era o caso. Aquela figura masculina amedrontadora estava, como dizem os americanos, in plain sight.

Decidi que aquela paralisia era neura minha e segui em frente, cruzando com o malucão que nem me notou. Contudo, poderia ter me dado mal. A verdade é essa. Segui meus instintos, mas talvez fosse traída pelo simples fato de que eu ali, sozinha, era uma presa fácil. Somos a próxima vítima, torcendo para não virar a bola da vez.

Conheço colegas que foram assaltadas com certo grau de violência ao saírem do carro, no estacionamento do trabalho. Os homens nos caçam, seja por perversidade sexual, seja por facilidade de dominação física. É um mato-sem-cachorro.  Não há paz. Olhamos, aflitas ao redor, numa paranoia diária, e corremos com nossos saltos altos a ponto de quebrar o pé para não sermos abordadas quando menos esperamos.

Situações-limite à luz do dia. À noite, esqueça. Uma mulher que caminha sola bajo la luna, no Brasil, está quase pedindo para ser vítima de alguma atrocidade. Frase machista que me dói expressar.

De bike, esperando o metrô na estação vazia, procurando o carro na garagem do shopping, andando para a aula de yoga na manhã que se inicia... Apreensão que perpassa nossos dias. Depois fazem troça com piadas de estresse e neurose. Sim, estamos à beira de um ataque de nervos, mas não vamos desistir do nosso direito de ir, vir e ficar parada no meio do nada!

Desse manifesto, vem a outra lembrança que a bela e aguda poesia me trouxe. Da mulher com quem eu cruzei apenas duas vezes nas minhas caminhadas matinais aceleradas. Ela, no sentido transversal; eu, no perpendicular. Ela vem da direção do eixinho de cima. Talvez trabalhe à altura da 106, 206 ou 406 sul. Quem sabe está indo para a aula semanal de como ser uma mulher incrível que vem e que passa a caminho da W3.

Por doença, nascença ou acidente, o andar da mulher lembra o de uma marionete comandada por um titereiro sem coordenação motora. Porém, de fantoche ela não tem nem uma linha sequer.

É segura, íntegra, autônoma. Caminha de cabeça erguida, olhar no horizonte, destemida. Não perde tempo em notar que a presença dela causa estranheza nos demais. Ela, também, duplamente acossada: pelo medo e pela inquisição dos padrões de normalidade e beleza que massacram o nosso sexo.

É claro que a mulher sabe que afeta os passantes.  Pena, repulsa, choque. Acontece que ela não está nem aí. Pega o rumo e segue forte, vaidosa, a desfilar sua roupa da moda. A alça da bolsa presa ao ombro a balançar. Perfeita materialização do tal “empoderamento feminino”.

A mim, ela regala um deslumbramento que reverencio. Namastê.

Comentários

  1. Peixinha local, peixinha universal,
    Peixinha minoria e maioria,
    Frágil e ousada,
    Peixa, loba,
    Olha pra dentro, olha pra fora

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  2. Pois é, Lu. A experiência de ser alvo deixa lá suas marcas. Como diz o poema: o medo dá vida às sombras! Mas - e graças aos deuses pelo "Mas", somos mais fortes que o medo! E assim continuamos caminhando, correndo, indo aos lugares que queremos ir, porque já dizia Adélia Prado que "Mulher é desdobrável. Eu sou.".
    Dias desses li que "coragem não é ação sem medo, é ação apesar do medo". Então lembro da mulher que lhe chamou a atenção na caminhada matinal e penso na coragem como o ato de seguir adiante, apesar do peso dos olhares de estranheza e repulsa.
    "Las mujeres siguen".
    Abraço!
    Francis

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  3. Lindo texto Lu, parabéns!! O machismo é um problema tão cruel... Infelizmente, até em algumas mulheres sinto o machismo. Que venham dias melhores! Bjs.

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  4. Aí Lu essas palavras são tão você. Bjusss linda.

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  5. Gosto de tudo que você escreve!

    Rosa Carolina

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  6. Sensações telepáticas do texto. Ando sozinha, com medo, mas sendo invisível! Lindo e forte.

    Mariana Mataluna

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  7. Adorei. Amei!

    Karla Mendes

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  8. Você é uma escritora e tanto sabe traduzir sentimentos com palavras...com belas palavras! Achei a figura da lilith perfeita para representar o texto. A sombra da Lua. A lilith rebelde em sua condição de ser submissa, a que não pode assumir seus próprios prazeres, a que se revoltou em ter que fazer como se manda... e assim seguimos hora vivendo e tirando proveito da figura popular e carismática da Lua ora sendo Lilith tomando consciência de sua condição de satélite. Mesmo assim o Sol sendo o Sol, o astro rei, não vive sem ela.

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  9. Como sempre acerta na lata, traduz literalmente nossos medos diários.

    Eu viajo sozinha de carro e sempre evito parar mais do que o necessário, inclusive levo lanche no carro para nao comer sozinha em beira de estrada, paradas apenas para abastecer...os homens nao saberao dizer o que é isso, jamais.

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