Crente que é Clarice (o texto)







“Escrevo pela incapacidade de entender sem ser através do processo de escrever”.
(Clarice Lispector)


"Calmo, específico, genérico". Eis o laudo psiquiátrico do preso que nos escreve. Aproprio-me do resultado. Nesse momento estou específica e genérica porque nada é mais paradoxal. Calma, não sei. Melancólica, certamente.

Especificamente o que faz a gente criar conexões reais com outras pessoas? A questão me intriga desde ontem à noite, quando recebi uma mensagem de antiga colega de trabalho. A convivência foi curta em contagem de tempo, mas deixou plantado o afeto que só me dei conta com a grata surpresa dela.

Estranho os caminhos da afeição... Nunca fiz o tipo popular, apesar de nunca ter me faltado amigos. Minha crença é que sempre assusto mais do que agrego. Tenho espinhos tão pontudos! Mecanismos de defesa nefastos. Cachorro que late e morde. Lanço palavras como balas dum-dum no coração de gente de bem. 

Mas eis que alguns bandeirantes me desbravam. Com delicadezas abrem picadas entre as minhas falhas de caráter para encontrar (?) a suave pupunha escondida. Numa análise psicológica barata, talvez não me permita merecer doçuras, levezas. Preciso sempre estar pronta para travar batalhas sangrentas com a vida.

Abandono afetivo na infância cria pessoas desconfiadas. Brigo o tempo todo com o escuro dentro de mim. O breu que me faz ser reticente em abraçar a alegria, a gentileza e a doação. As pessoas ao redor me interpretam distante, pedante, arrogante e brava. Brava é a sombra que me acompanha. A minha “zashiki warashi”, o espírito da criança do quarto, que exige atenção e cuidados sem descanso.

Daí fugi da carência profissional traduzida em choros abundantes e cobranças ferinas para desaguar no alheamento. As perdas excruciantes para a morte e para a incompreensão me levaram a milhas de distância dos sentimentos frágeis. Creio que meus filhos se ressentem da mãe esquisita; meu marido (que me conheceu na primeira versão) está confuso com essa mulher agora mais pedra do que vegetal.

Dei uma guinada que me preserva de dores mais fortes, mas me priva de uma entrega profunda. Perambulo cínica pela existência, mas é uma postura que não me representa. Prefiro ser específica do que genérica. A geração que está aí experimentando essa onda “agênero”, o que é que vai ganhar? Que coisa mais esquisita, mais sem noção de tensão, pulsão sexual... 

Preciso corrigir o rumo dessa rota. Não posso deixar a orfandade me definir. O luto me embotar. A vida me deu o presente da mudança. Posso fazer da experiência que virá um marco entre o antes e o depois. 

Peço perdão aos meus bandeirantes! Que não desistam de mim e sigam me conduzindo na busca do Eldorado.



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