Tocata e Fuga*




Toda dia de curso eu passo por ela, que se esconde no canto atrás da pilastra do suntuoso edifício. Não sei precisar o rosto ou a idade, concentro-me na cotidianidade da imagem. 

Toda vez a fumaça; o dedo a boca, que franze para sorver o vício: tragar mais de quatro mil produtos tóxicos que causam dependência emocional e física, quiçá câncer e enfisema pulmonar. 

Passo por ela no frescor, leveza e perfume da manhã que recomeça. O céu é límpido, claro e puro até o momento no qual me aproximo daquela nuvem branca acinzentada. Chaminé nublando o horizonte. 

Ela é solitária nesse hábito. Sempre pensativa e recostada na pilastra a baforar suas reflexões ao ar livre. Livre é uma palavra estranha nesse contexto... 

Não sei se ela me nota, pois são muitos os transeuntes. Não sei se lanço para ela um ar de reprovação. Não se ela sente o possível incômodo que me causa. Mas, porque será que eu a julgo, deus do céu? Porque concluo: ela é fraca, entregue a uma escolha doentia; uma paixão destrutiva. 

Reconheço que sou implacável com aqueles que são levados pelas circunstâncias da vida. Ao mesmo tempo, vislumbro nessa cena uma projeção. Deposito na fumante impotente e impassível, minha arrogância e inquietudes. 

- Até onde estarei reprimindo insanos desejos em nome da coerência?, questiona o diabinho da menina louca. 

- Complexo, dramático e paranoico, minha cara. Escreva ou coma um chocolate, sugere o anjo atarefado. 




*Tocata (do italiano: Toccata) é a obra de música erudita para um Instrumento de teclas, geralmente enfatizando a destreza do intérprete. Fuga é um estilo de composição contrapontista, polifônica e imitativa, de um tema principal, com sua origem na música barroca. Na composição musical, o tema é repetido por outras vozes que entram sucessivamente e continuam de maneira entrelaçada.



Comentários

  1. Se tem uma coisa que eu aprendi na vida, foi a não criticar nenhum tipo de vício. O do cigarro é terrível, porque incomoda as outras pessoas. Então, eu acho que o fumante tem que se isolar, como a pessoa do texto faz.

    O vício é uma fuga, realmente. Mas comigo acontece uma coisa muito estranha... Há dias em que eu me empanturro de tudo quanto é porcaria e no dia seguinte minha glicose de jejum está perfeita. Há vezes em que passo três, quatro dias fazendo dieta e quando vejo a glicose está na estratosfera. Como explicar isso???

    Meu marido diz que eu fico tão estressada por ser podada de tudo que eu mais gosto, que a glicose sobe.

    Faz sentido.

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