Adamantinas






A família no fusca parou no semáforo. E o tempo parou para, em seguida, retroceder uns 40 anos. Havia um pai ao volante, a mãe e duas crianças no banco de trás. De uma delas só se vislumbrava os olhos e o topo da cabeça. Era ela, no fusca da mãe, a caçula, a transitar pelas avenidas ainda desertas de Brasília. 

Carrapicho. Estava sempre na barra da saia da mãe ocupada com tantos afazeres. Adorava quando podia sair de fusca pela cidade. A W3 Sul imponente com suas fachadas coloridas: Fofi, BIBABÔ, Casa Nordeste, Casas Pernambucanas, Pioneira da Borracha... Aprendeu a ler rememorando aqueles letreiros. 

A família no fusca era de um anacronismo doce ao lado dela. A mãe semelhante à personagem da mãe da Mafalda, com cabelos crespos volumosos e arredondados. Perfil sério olhando para frente. A maior, encostada do lado esquerdo, parecia entediada como são os pré-adolescentes. 

A menorzinha vagava olhos curiosos para o carro ao lado e foi quando se estabeleceu o contato. Ela do lado de cá, sozinha em seu carro; a guriazinha do lado de lá, sozinha na avidez pelo mundo. Então a mulher lhe deu um tchau amistoso. A menina se encolheu no banco, desaparecendo na timidez. 

Do pai, só era possível ver as mãos másculas ao volante. Como se fosse um fantasma sem rosto. Como o próprio pai da mulher que observava o fusca ao lado. Um pai onipresente em espírito e idealizações. Será que tinha as mãos másculas também? Nunca saberá, nunca a memória de seu cheiro ou calor. 

O sinal abre e o fusca ruge o som reconfortante da infância. A família segue a caminho da escola? De casa? Não, entram no estacionamento e a mulher resiste para não parar também e continuar seu processo de espionagem, de reminiscências. A mulher quer trazer à tona, do fundo do coração, aquelas andanças com a mãe por todos os pontos cardeais da capital: Cobal, Revenda de produtos agropecuários no SIA, Hospital da Asa Norte (hoje HUB), ACM, Igreja São Judas Tadeu capelinha de madeira, casa da madrinha... 

A mãe e ela num fusca cor azul diamante. Memórias duras, impossíveis de ser adulteradas por qualquer outra lembrança que não seja também diamantina. Em contrapartida, frágeis e voláteis por causa das oito faces (o número do infinito) perfeitas, simétricas. Os sentimentos orbitando, arranjados ao redor do átomo central: o cérebro. 

Os diamantes não são eternos, pois o carbono definha com o tempo. Todavia, perduram além de qualquer ser vivente. Assim são as recordações.

Para ir além:

http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-df/v/55-lugares-conta-historia-de-fotografa-apaixonada-por-brasilia-e-pela-w3-sul/3942623/


Comentários

  1. Legal Luciana!!

    Fusca: acho que já te falei, mas o sonho da Ana Olivia, é andar em um!!
    A gente ainda vê alguns por aqui.

    Sua mensagem me fêz lembrar da Kombi que tivemos.
    Só me lembro da minha mãe dirigindo.
    Após a morte do meu pai, minha mãe começou a aprender a dirigir: a nossa Kombi!!
    E antes da Kombi, meu pai tinha um Jeep (daqueles "de roça"), do qual eu me lembro também, mas não do meu pai dirigindo.
    Estranho...

    Um beijo,
    Paulo.

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    Respostas
    1. Poizé, dear Paulo, meu pai também teve kombi, tinha de ter com cinco filhos, né?:) E eu ainda nem tinha nascido... Meus irmãos têm memória da Kombi e também do Jeep, sim, ele teve um Jeep, veja que coincidências bacanas entre a gente!!!

      Mas eu tenho memória do fusca: o fusca azul diamante que mamãe dirigiu durante toda a minha infância e adolescência. Carrinho que aguentou todas as barras e todas as lamas...

      Aqui no Plano Piloto não é muito fácil ver um fusca sendo usado com veículo. Só rola fusca de colecionador nessa terra de gente que ganha muito bem no serviço público... Fiquei impressionada de ver um prosaico besouro ao meu lado no farol exatamente como se estivéssemos na década de 70.

      Beijão,

      Lulupisces

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  2. Se estiverem escritas e forem vividas...talvez.

    Davi

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