O deslize de Eva




Ao cair da noite no Dia Internacional das Mulheres, penso sobre as mulheres de verdade. Aquelas para as quais a data foi forjada. Estamos no século 21 e as manchetes dos jornais deste domingo ainda debruçam suas letras sobre estereótipos: as mulheres poderosas da moda; as divas da música; as poucas presidentes no mundo; as raras CEOs de empresas globais. 

Tanto a caminhar, portanto. Reproduzir discursos prontos é menos trabalhoso e dolorido do que refletir. Teria sido bacana manchetes sobre mulheres que a gente encontra e convive todos os dias. Mulheres que vemos quando nos olhamos no espelho. Mulheres que se equilibram sobre o surrealismo das múltiplas personalidades: um pouco de realização profissional; um pouco de tesão; um pouco de alegria; um bocado de angústia em relação ao futuro dos filhos; outro tanto de tédio com a rotina do casamento, sempre mais sacrificante para ela; uma serena tristeza pela velhice que se aproxima; uma discreta esperança que a vida mude... 

Nesse início de noite penso na costureira Maura que, na verdade, não é Maura, mas Maureci, Maurilene, Maurilânia ou Mauritânia, já não sei. O Dia Internacional das Mulheres foi criado para saudar e salvar mulheres como Maura, que continua a honrar um relacionamento com um homem viciado em álcool apesar das duras penas e das triplas jornadas. Cozendo e cozinhando ela cria seus três filhos. As duas moças irão reproduzir o modelo da mulher forte, porém submissa? Da mãe inteligente e decidida, todavia, inerte? 

Se nós que crescemos em comunidades nas quais certos comportamentos pegam mal aos olhos da paridade entre gêneros, repetimos a sina que se espera das mulheres: casar, ter filhos, acumular tarefas e manter casamentos em detrimento da sanidade, como esperar que as Mauras, Edivânias, Suelenes ou Joanas D’Arc remodelem suas histórias? 

Se nós que frequentamos a escola e viramos profissionais na área que escolhemos ainda somos completamente cinderelas e brancas de neve, fantasiando nossas filhas de princesa durante toda a infância (e chocando-nos, caso elas gostem mais de brincar com espadas do que com bonecas), como estranhar que as Clemências, Jucilenes, Marias ou Anas almejem o príncipe encantado, o “felizes para sempre”? 

O Dia Internacional das Mulheres não deveria ter sido feito para quem lê esse texto e pode jogar palavras fora. Mas, ao mesmo tempo, é a prova incontestável de que nós permanecemos presas ao estigma do deslize de Eva, sempre em busca da redenção por meio de um bom mocismo asfixiante. Infelizmente, permanecemos imaturas (espantoso!) para abrir mão do que nos foi impelido como gênero, a fim de criar outras mitologias. 


Comentários

  1. Luciana,

    como mulher, sinto-me realizada por estar casada, ter uma filha e acumular diversas tarefas diariamente. Eu detestaria a vida de solteira das minhas amigas. Tive a oportunidade de experimentar quando me separei do meu primeiro marido.

    Hoje em dia casamento é escolha. É realmente uma pena que tanta gente se deixe levar por condicionamentos e não tenha coragem de escolher o que realmente possa lhe fazer feliz.

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  2. Poizé, Larinha, tenho minhas desconfianças sobre essa tal liberdade consciente de escolha. Não acho que seja assim para boa parte das mulheres. A questão do texto não é dizer que casamento é uma merda e ser solteira é legal.
    A proposta era refletir o quanto esses modelos mentais, esse inconsciente coletivo molda a vida das mulheres até hoje. Fico feliz em saber que você pôde escolher e é realizada com a sua escolha. Não sei se todas as mulheres são e não sei quantas jamais confessarão que não são. Um beijo!

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  3. Muito Bom!! Em seu artigo revi escolhas..., também com espanto! Genial, Luciana!

    Maria Heloísa

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