Para agradar aos gregos




Minhas leituras de banheiro são mais densas do que as leituras de cabeceira. Não posso correr o risco de ferir de morte um sono tão temperamental, dado a achaques e estrelismos. Só quem atravessa a madrugada pedindo perdão a Morfeu, aprende que carece ser cauteloso sobre quem se leva para cama. 

No banheiro, o ambiente é livre de subterfúgios. É você diante do espelho impassível. É você num santuário de focos de luz e pensamentos voláteis. O momento limite de solidão e da mecanicidade das necessidades básicas da vida. Básica também é a cor dos revestimentos; assépticos para limpar corpo e mente, tornando a viagem por arredias e intrincadas histórias mais deleitosa. 

Ler Guimarães Rosa e Clarice Lispector é preciso. Mas não na alcova, caso você tenha clarões e vertigens e lágrimas diante do estupefato texto em suas mãos. Refletir sentado é mais apropriado do que deitado, entenda você. “O Pensador” de Rodin eternizou a melhor posição corporal para matutar. Eureca! Se os vasos sanitários fossem usuais no século 19, poderia jurar que foi ali que o escultor se iluminou para as suas obras mais emblemáticas. 

Eduardo Galeano também é perigoso para ser apreciado em qualquer lugar. Leituras subversivas precisam da segurança e isolamento promovido pelo bunker de azulejos ou cerâmica. Vontade que dá é apertar a descarga e sair manifestando feminismo e latinidade por aí. Imagina se intensa comichão ocorresse na hora de dormir? Pesadelo com passeatas, repressão policial, bombas de gás lacrimogênio, debandada, gritos, prisões... Proibitivo. 

A verdade é que existem livros e livros para hora de dormir. Alguns só podem ser lidos na hora de acordar, como Lygia Fagundes Telles, que sempre nos deixa em sobressalto, tamanha é a qualidade do suspense. Os filosóficos, instigantes, psicológicos e incomodativos pedem o confessionário do banheiro e os mais ficcionais podem ser levados para o criado-mudo, pois, ainda que maravilhosos, lhe induzem ao torpor do sono. 

Quanto mais longe da sua realidade; quanto menos cutucar a onça com a vara curta; quanto menos a carapuça servir, mais adequado é o livro para lhe acompanhar no aconchego do travesseiro. Você lê, se diverte, desanuvia, além de reter precioso material imagético para enriquecer o sono REM logo adiante.

Afinal, é melhor manter a boa vizinhança com Hipnos (pai de Morfeu), entidade doidona que paira suavemente sobre o planeta e leva o abençoado e restaurador descanso a todas as criaturas. Deus grego é muito melindroso, compreende? 


Comentários

  1. Meu conselho: leia macroeconomia antes de dormir. É tiro e queda!

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  2. Bom-dia, Lu!
    Quando leio seus blog fico aqui admirada de como vc coloca as palavras....Pois hoje me pediram pra providenciar frases pra evitar fofocas de corredor e ocupar o tempo com coisas positivas para colocar nas portas dos banheiros, em frente aos bebedores etc etc... Não sei se vou conseguir usar as palavras certas, mas vou tentar....

    Leila

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  3. Adorei!!!
    Como vc arranja tempo pra escrever esses textos maravilhosos??? Rsrsrs....

    Sinara

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  4. Lu, linda! Você é doida demais! Sua cabeça é de outro planeta! Escreveram bem ali em cima: "...como você coloca as palavras" - "textos maravilhosos"!!! Mais um texto bom demais!!! :)

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  5. Valeu Luciana!

    Sim, é ali mesmo que faço algumas leituras. Nem tão profundas, filosoficamente falando.
    Até porque dizem que não é aconselhável passar muito tempo na posição necessária.

    Deixo apenas algumas Revistas da Fapesp ao alcance das mãos.
    Onde se pode encontrar artigos com conteúdos aproveitáveis.

    Gosto sim, desses momentos de leitura, porque ali - quando se vive em família - é o único local da casa, onde se pode, de fato, ter alguma privacidade real.

    Um beijo.
    Paulo.

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