Panturrilhas e Guerrilhas




“O imprevisto me fascina.” A afirmação é da Clarice Lispector, que não gostava de ser comparada com a Virgínia Wolf - com razão. Afinal, a primeira sempre esteve encantada com a vida. Ao contrário da segunda, depressiva. Podiam escrever em golfadas mentais herméticas, mas as posturas perante a existência dessas mulheres fantásticas divergiam significativamente. Por isso, tô com a Clarice e não abro. 

Essa viagem para o Rio foi assim, um imprevisto. Que começou com a previsibilidade de todas as viagens: a compra das passagens aproveitando alguma promoção há meses. A data se aproximava e confesso que não tinha em alta conta essa ida corrida para a cidade maravilhosa. Rolou mesmo um contragosto na hora de arrumar a mala. 

Voar sempre me aborrece. Ou melhor: apavora. Mas o marido tecnológico tinha um arsenal de equipamentos para me tirar do ar. (Hahaha, trocadilho saiu na teclagem e fica). Headfones milagrosos evaporaram os barulhos insuportáveis da aeronave. Em troca: muita música bacana. Deus também foi misericordioso com essa pecadora contumaz e não colocou nenhuma nuvem negra no caminho. Céu de Autoban: sem buracos nem desníveis. Imprevisto delicioso. 

Pegar taxista neurastênico e traumatizado com a violência da cidade não chegou a ser um imprevisto, pois já aconteceu comigo em Sampa. Mas, no Rio, foi surpresa. Geralmente o carioca não dá muita bola para os índices de criminalidade de sua cidade endeusada de cartão postal. 

Porém, descobrir onde o meu primo ausente há cinco anos morava foi mesmo imprevisível. O Rio de mil e uma facetas. O lado meninice de férias no Méier/Lins Vasconcelos; adultice em Botafogo (no abrigo de paz da amiga Márcia)... Uma vez, fiquei em Copacabana; outra em Jacarepaguá (na casa da saudosa vó Glória da amiga Marisa) e também já pousei na Barra, lugar que nem deveria ser chamado de Rio de Janeiro, por favor! Agora, desembarquei desavisada em Laranjeiras, quase Santa Teresa. Mais um Rio a se apresentar na avenida. 

Meu primo mora de frente para o crime. Bem, pelo menos é o que as pessoas pensam na imediata fração de segundo em que colocam os olhos naquele caótico jeito de viver. Nunca tinha me visto tão próxima de uma favela, ops, comunidade. Divertido esse eufemismo que procura desprender o local de sua fama mais nefasta: favela=marginais à solta. 

Todavia, os moradores transbordavam alegria e harmonia em contraste frontal com os severos policiais militares da UPP da Cerro Corá. O fim da rua e entrada do morro parece experimentar uma ameaça permanente de guerra... EUA versus Síria, entendem? Tensão esquisita que os burgueses do Plano Piloto ignoram na prática. 

O final da Rua Alice, que desagua no túnel de mesmo nome (o mais antigo perfurado na capital fluminense), é uma região de casarões e casas, algumas abandonadas, outras caindo aos pedaços... Há também as habitadas por pessoas descoladas e artísticas como o meu primo. A gente fica perto do céu azul, no meio da Mata Atlântica verde, mas com os pés na incessante algazarra da comunidade. 

É um zumzumzum ininterrupto. O povo vive em festa na Cerro Corá. O Bar do Edilson era a minha paisagem ao abrir a janela todos os dias de manhã. Tinha a ligeira impressão de que o cafofo nunca fechava. Cachorros, crianças gritando, reggae na caixa, tilintar de garrafas, passos, conversas entrecortadas. Vivi quatro dias no barril de pólvora que pode até matar, mas que, pra minha sorte, não passou de festim. Que imprevisto bom! 

Pensei em fotografar o povo encarapitado no morro. Não tive coragem. Quem sabe da próxima... Quis também flagrar os meganhas e seus armamentos ultrablaster pesados, mas intui que talvez eles investissem em mim com suspeição troglodita. E aí seríamos dois: Amarildo e eu, desaparecidos a vagar no imaginário carioca-nacional. 

Todo o resto do Rio continua previsivelmente sinuoso e insinuante. Meu primo também continua meu primo, que imprevisto reconfortante! Relembramos tantas passagens compartilhadas na infância e, para o meu fascínio, compreendi que sempre seremos ligados, por mais distantes que estejamos. Um crescer comum não pode ser apagado pelos desvios da caminhada. 

A previsão em meu coração apontava para mais uma viagem qualquer. Imprevisivelmente, essa milésima visita ao Rio de Janeiro passou para a eternidade como uma das mais saborosas e, digamos, doloridas. Alguém aí tem um par de panturrilhas novas para me emprestar? 


Comentários

  1. Bom-Dia!
    Muito legal seu Rio de Janeiro! Curtia demais por lá quando Joca e família lá moraram. Depois não fui mais e sinto falta. RJ continua sendo a Cidade Maravilhosa aos meus olhos.

    É gostoso ler seus textos, grata.

    Abreijos e até breve,

    Guti.

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  2. Adooorooo!!!" o Rio amanheceu cantando,toda cidade amanheceu em flor, e os namorados vão pra rua em bandos por que a primavera é a estação do amor..."sempre que posso visito esta cidade que é Maravilhosa...bj.
    Namastê!
    Cynthia

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  3. Verdade Lu,

    Rio de Janeiro é uma cidade MARAVILHOSA.

    Bjus,

    Davide

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  4. Adorei. Realmente o Rio é surpreendente. E eu amei a visita.
    Beijo do Primo.

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  5. Adorei o post.
    Volte com os meninos .

    Beijo, Lu.

    Alessandro Brandão.

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