As Mulheres com C



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Lendo um conto de Bukowski na noite de “chuvaciriço” de ontem, “A Mulher Mais Linda da Cidade”, me lembrei de algumas mulheres que passaram pela minha vida e deixaram seu rastro incandescente. Primeiro, recordei dona Aurora, a mulher matuta que vivia na fazenda de meus pais. 

Cabelos gigantescos que chegavam ao cóccix, a velha senhora usava superlativos vindos de sua sabedoria indígena como chuvaciriço (que, em se tratando de neologismo puro, poderia ser grafado também como chuvassiriço ou chuvacirisso). 

Mas, voltando ao fantástico conto de Bukowski que escreve, com o perdão da expressão chula, porém muito pertinente ao autor - pra caralho - a história de Cass me trouxe de volta uma guria que encontrei nos descaminhos profissionais da minha existência, sempre repletos de furadas. Fazendo um retrospecto frio, não sei mesmo como é que consegui sair de tantos chefes e lugares sinistros com ar nos pulmões... 

Desculpe-me, estou me perdendo... Cass era tão parecida com Cassiana que sua figura esbelta e linda surgiu à minha frente novamente. Tudo nela era puro magnetismo, a começar pelo nome: forte, incomum. Cassiana tinha lindos e longos cabelos negros, olhos azuis de cortar o coração e boca sensual. Era quase um caso de amor à primeira vista. 

Entrou naquela agência de publicidade como um Vesúvio em atividade e dela se evadiu sem fornecer pistas. Mas sua presença-cometa foi suficiente para que produzisse um poema sobre aquela menina-mulher que escondia muitos segredos: 

Cassiana, Cassi Jones, Cassiel... 

Anja sobre Berlim, Brasília ou Cuiabá. 

Você alegra. 

Carrega a força azul em seus olhos curiosos. 

Gostei de você frágil e fortaleza: paradoxal. 

(usando disfarces negros para esconder seu cabelo anjo) 

Você, miragem. 

Deixa suas asas em casa e passeia angelicamente entre os humanos. 

Mas não há engano. 

É que sou bruxa e lhe conheço muito bem, 

Meu bem. 

Por onde se esquivará Cassiana? Espero que não tenha cortado a garganta como Cass, se bem que tinha pinta de ser muito angustiada... 

Aí viajei mais longe em meus pensamentos e me lembrei de outra garota com C, Catarina. Estudávamos juntas no Colégio Inei. Ela e o irmão gêmeo Irineu eram inseparáveis. Catarina, a grande manipuladora. Ao estilo de Cassiana, escondia muitas verdades. Não era bonita, ao contrário. Mas atuava com precisão em suas exímias histórias de sofrimento. 

Fazíamos roda e cara de boba à sua volta, lamentando, chorando e acreditando que a menina sofria nas mãos de pais monstruosos. Quando descobri suas invenções macabras, depois de passar um sábado em seu apartamento luxuoso da 311 sul, tive o único rompante de violência física de todo o meu histórico escolar: soquei o rosto de Catarina com toda a força dos meus bracinhos franzinos de nove anos. Essas meninas, mulheres atormentadas... O que terá sido dessas garotas tão complexas na maturidade? 

E ainda houve outra, estranha, enigmática, com olhar obliquo, uma Capitu. Passou uma chuva naquela empresa-moedor-de-carne chamada Itápolis. Ficava no bairro Santa Cecília, São Paulo. Odiava meu serviço subalterno e insípido. Era uma operária que batia ponto quatro vezes por dia. Eu, que havia estudado para ser uma estrela da redação publicitária, numa das melhores universidades públicas do país... 

Porém, certo dia, veio essa belezura branca de cabelos negros cortados ao estilo Chanel. Lânguida, Camila era de berço, notava-se. Estava no lugar errado, na hora errada como eu. Uma rebelde sem causa que fingia trabalhar, mas devia morar nos Jardins, Morumbi... Duvido que pegasse metrô, ônibus. Princesa. 

Então me veio com a proposta de trabalhar com um cara que ela conhecia, uma espécie de editor que precisava de alguém que organizasse os originais, os papéis... Morava numa cobertura de frente para a Praça da República. Topei. 

O cara era soturno. Um coroa para nós, meninas de vinte e poucos anos. Sonhei que ali eu poderia, quem sabe, editar o meu próprio livro. Mas tudo o que eu fazia era passar o dia apreciando a linda vista do topo: as formiguinhas correndo no centro da Pauliceia. 

Um dia, desavisada, desci pela escada caracol para o apartamento do velho andrógeno. Antes de chegar ao último degrau vi a lânguida em movimentos lânguidos sobre o colo do coroa moreno de olhar penetrante. As costas nuas e perfeitas de Camila eram uma pintura.

Não sei se ele me viu, até hoje não sei. Paralisada, entendi que aquilo podia ser um futuro ménage a trois do qual não estava nem um pouco a fim de protagonizar. 

Subi ofegante e vermelha. Deu a minha hora, fui-me embora. Nunca mais voltei... Todavia, ainda me pego nessas reminiscências nebulosas. Por onde andará Camila, em quais coberturas, sobre os colos de quais velhos... 



Comentários

  1. Luciana,

    Mulheres com C, me vem logo à cabeça Clarice Lispector... rsrs

    Sua escrita é muito instigante, então fiquei curiosa como sempre!

    Abraço carinhoso,

    Rogelma

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  2. Obrigada por dizer que a minha escrita é "instigante". Adoro o conceito de instigante. Só de pensar que posso mesmo ser instigante já ganho o meu dia!;)

    Um abração,

    Lulupisces.

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  3. Oi Luciana,

    Realmente acho a sua escrita instigante mesmo, e penso seriamente que você deveria começar a escrever livros, pois vejo em você uma capacidade belíssima de jogar com as palavras a ponto de transformar meros fatos cotidianos em uma leitura muito envolvente!

    Abraço carinhoso,
    Rogelma

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