Oásis




O calor amolece os miolos. Sinto-me um daqueles relógios de Dalí, derretendo languidamente enquanto procuro a danada da verve literária. 

Nesse sábado, catei amoras no pé. Minha pele, antes de pêssego, virou goiaba bichada. As doenças crônicas que vão aparecendo quando a gente acumula, além de milhas, décadas. Mas, voltando ao bucolismo das frutas que não nascem nas gôndolas do supermercado, foi refrescante buscar as delicadas amoras entre a ramagem. As mais roxinhas, tão delicadas... Muito cuidado! Tocou, caiu e se perdeu. 

Enchi dois copos de plástico. Que contradição: a natureza preenchendo a esterilidade artificial daquele objeto branco. No horizonte, a plantação de couve verdejava os olhos. “Eles abastecem o Carrefour”. Tá vendo? Hortaliças também não crescem em multinacionais. 

Meu filho caçula se perdeu naquele mundão árido da roça. De longe, observava sua meninice curiosa. Seu deleite em fazer parte da terra. Eu também era assim e de vez em quando retomo onde parei: catando amora do pé. E lá ia a cabecinha loira seguindo a dona da chácara por todos os lados... 

Não sei se foi o calor, uma miragem, mas de repente era Rômulo atrás da vó Maria pela fazenda Salta Pau, futucando barro aqui, cavucando buraco acolá. Fogo nas ventas e nas folhas secas que se acumulam sob as árvores e podem esconder aranha armadeira, escorpiões... Ele seria o neto ideal para a mania de mato da minha mãe. Rapidamente se tornaria seu preferido companheiro de traquinagens rurais. 

Senti um prazer e uma dor intensa com aquela cena. Na hora da morte amém, minha mãe só se lembrou do nome de um único neto: Rômulo! Previra, às portas do além, que seria esse o pedaço de si que lhe daria mais compreensão? E eu fiquei ali, molenga de saudade e emoção... Parada, à margem do quadro, vendo Maria levar o menino em seu encalço: entra no galinheiro, alisa pintinho nas mãos, sobe monte de brita, recolhe areia em garrafa pet... 

O garoto reconhece o pé de manga, o pé de banana, o pé de milho que antes verde, agora se apalhou... “Mamãe, mamãe, veja, peguei um ovo azul!” As galinhas d’angola fogem esbaforidas. Eu sorrio com a boca e choro com os olhos. A vó Maria vai embora... Mas pressinto que a mulher impressionante não o deixará sozinho quando o chamado da argila se repetir (e serão milhares de vezes): Rômulo!



Comentários

  1. É Luciana....
    te confesso que você fez os meus olhos ficarem marejados de lágrimas.
    A relação que você estabelece entre a sua mãe e o Rômulo é semelhante a que faço entre a minha mãe e a Ana Olívia.
    Às vezes, a Eliane comenta sobre algum comportamento da Ana Olivia, dizendo: "Olha aí a dona Lindinha".A minha mãe era a dona Linda.

    Um beijo,
    Paulo.

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  2. Olá, mana do coração,

    Nossa mãe está por perto e sempre estará, querendo que encontremos a nossa harmonia familiar, que seguremos a sua mão e deixemos brotar, no coração e no rosto, de modo puro, forte e verdadeiro, um claro e permanente prazer pela vida, que ela demonstrava e ostentava por seu sempre presente, largo e belo sorriso, que a acompanhou mesmo em sua lenta expiação e agonia, em sua terrível doença.

    Eu quero resgatar essa vida que ela nos deu e que merecemos. Podemos ser felizes, como ela conseguiu ser, mesmo viúva e cheia de filhos menores, mesmo sem um companheiro com quem pudesse repartir alegrias e frustrações, desassossegos, partilhar intimidades, segredos.... Mesmo lutando de forma desigual e desumana contra o câncer, ela não esmoreceu...

    Ela foi bela e cheia de vida até o fim, uma luz na nossa família, que não devemos jamais apagar.

    O exemplo dela, essa mulher maior e poderosa, no sentido mais amplo que essas palavras podem ter e de nosso pai, outro guerreiro incansável, homem de honra e muitos valores, não podem ser esquecidos e devem povoar nossas mentes, lembranças e ser contados para nossos descendentes, através dos tempos.

    Nosso pai, que descobriu em nossa mãe, naqueles grotões rurais de Goiás, a garra e beleza que fariam a diferença na luta de ambos, companheiros reais e leais, na busca de um lugar ao sol, de uma vida melhor aonde os sonhos viraram realidade - Brasília.

    Temos que continuar essa saga, a eles devemos o que somos e toda essa riqueza de história e vida, que herdamos. E permitir a libertação de suas almas, que merecem descansar e serem felizes, sempre.

    Abraço a todas as grandes mulheres dessa família,

    Marilena.

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  3. É verdade... Nada como as lembranças e em seguidas vem a saudades! No meu dia a dia, tenho o peso da saudade de um olhar, das palavras ditas por ela da maneira mais solta que só ela mesma sabia pronunciar, das broncas, da generosidade à maneira dela etc, etc... Pensar como pesa uma ausência de mãe... Saudade! Como dizia Carlos Drumond de Andrade, "Sentimos saudade de alguns momentos de nossa vida e de certas pessoas queridas que passaram por ela..." Mamãe sempre será esta pessoa querida!

    Bjs,

    Leila.

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  4. Bonito o texto, Lu, bonita a viagem na memória e nos afetos que o motivou!

    Bjs,

    Isabel.

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