"De perto, ninguém é normal"




Sei lá se você acredita em sinais. Também não sei se acredito, mas, agorinha, quando ia escrever que a vida é sempre mais louca que a arte, leio uma frase do Milton Hatoum: “a arte é transcendente sempre”. Ou seja: é para eu seguir no meu raciocínio ou sigo outra linha devido ao desmentido? 

Talvez não seja lá uma contradição o que o escritor afirmou. A Arte transcende sempre, mas a vida, de vez em quando. E aí, nesse momento de ruptura, ela fica tão ou ainda mais louca do que a Arte. Tô parecendo que tomei chá de cogumelo, concordo. Mas é que alguns sofismas são deveras instigantes. 

Há quase meio ano, venho respondendo e-mails de cidadãos de todo o país. A seção que trabalho fornece informações processuais para advogados ou partes que estejam com processos correndo no STJ. Nada complexo, o básico. Só que o básico já é tão complexo em nosso sistema judiciário, que é preciso ter paciência e certa competência empática para perceber qual tipo de resposta vai chegar ao entendimento daquela pessoa que, inevitavelmente, está numa situação fragilizada. 

Porque qualquer um que precise fazer uso do Poder Judiciário no Brasil é, antes de tudo, um forte. E um sofredor. Sei, por acompanhar tantos casos ao longo desses tantos anos no serviço público jurídico. Sei, por ter sido parte num processo de inventário que se arrastou por três anos e ainda não transitou em julgado  (ainda não finalizou de forma a não caber recursos). 

Não passa um dia sem que eu não vislumbre a natureza delicada e tortuosa do ser humano. Além dos e-mails, recebemos cartas de presos com os mais dilacerantes relatos. Não é tarefa minha respondê-las, porém não me passam despercebidas as vilezas do sistema que produz o sub subproduto do lixo. 

Sabe aqueles plásticos pretos que dizem que são feitos de refugos de reciclagem e, por isso, não podem mais ser reciclados de novo? Assim é o preso no Brasil: um saco preto de lixo. Quase sempre negro (redundante). Um dejeto. A pessoa entra no sistema como material orgânico reciclável e sai, se sai, como material não-reciclável. 

Ontem, chegou uma cartinha de um condenado pedindo implante dentário. Com letra de forma embolada à cursiva, além de muito respeito às autoridades, pero nenhum ao Português, ele contava que só tinha nove dentes careados e perdera outro, extraído de forma “dispricente” pela dentista da unidade prisional. A gente ri do bizarro, mas é dorido ver tanto descaso. 

E ao modelo dessa são dezenas, centenas. Leio mensagens diárias de puro desespero: “como posso encontrar o pai da minha filha, que é viciado em crack? Não sei se ele já morreu pelas ruas...” Ou: “Minha mãe morreu e deixou uma casa para minha irmã e eu, mas agora o meu pai fez uma casa para ele viver com outra mulher no mesmo terreno e diz que a gente não tem direito a nada. É verdade?” 

O cidadão não entende patavinas da Administração Pública, não confia em ninguém e não tem a quem recorrer, sem perdão do trocadilho. E aí encontra um lugar chamado Seção de Informações Processuais e despeja toda a sua incompreensão com um Estado-padrasto de contos dos irmãos Grimm. Metade de nossas solicitações não nos diz respeito. São lamúrias, tormentos, angústias, necessidades de terapia e de colo. Torpezas, mesquinharias e insanidades desfilam por inúmeros pedidos de socorro. 

Outras tantos são pura teoria da conspiração: “Estão me seguindo, têm câmeras escondidas pela minha casa”. Ou: “Querem fazer do Brasil um país dirigido pelo crime, assim como é o México”. À minha disposição, tenho uma fonte inesgotável de neuroses que dariam roteiro de filmes, livros e peças de teatro. 

Já vi milhares de histórias encenadas nas mais variadas estéticas e mídias. Mas, mesmo assim, ainda me espanto com a vida real. Nada me prepara para a transcendência do cotidiano quando ele passa, sem edição, diante dos meus olhos.


Comentários

  1. É isso aí, Lu!

    Trabalhar no Judiciário sempre vai nos fazer deparar com a dura realidade do cidadão. Na maioria das vezes, não podemos ajudar... Às pessoas que escrevem, como você, resta transformar a perplexidade em belos textos...

    Bj,

    Ana Claudia.

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  2. Oi Lu,

    até domingo!

    Vamos ver a vida ao vivo, mas uma vida mais bonita e menos dorida que a do seu texto de hoje no blogue.

    Essa das cartas faz doer.

    Beijos!

    Carmem Cecília.

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  3. Vixe. .. Pelo menos entrar em contato com essas pessoas nos faz valorizar mais os pequenos dramas da nossa vida... bj

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  4. A vida como ela é... você a descreveu nua e cruamente,cabe a nós a consciência para acolher com compaixão,fazer a nossa parte,tendo a "serenidade para aceitar aquilo que não pode ser mudado, coragem para mudar aquilo que pode ser mudado e sabedoria para distinguir um do outro".Meditemos pela paz do mundo...bj.
    Namastê!
    Cynthia

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  5. Excelente, Luciana.
    QUE PAÍS E ESSE?

    Abs.
    jraimundo

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  6. Luciana,
    tudo bem?

    Olha, esse assunto é mesmo sério: Justiça.

    É um tema complexo em qualquer parte do mundo, mas creio que aqui, no nosso Brasil, a questão é mais séria.

    Tudo que tenho a dizer, deve ser mais do que elementar pra você.
    Ou, é claro você pode discordar completamente.

    O que penso é que a demora para o cumprimento das leis, faz a Justiça ser desacreditada.
    O número absurdo de leis, que faz o cidadão refém de pessoas que as possam "interpretar".
    Interpretação esta, que gera visões dissonantes.

    Sou daquele grupo que gostaria que houvesse um número menor de leis, mas que, fossem, de fato, cumpridas, ou seja, cobradas pelo poder público.
    Porque, uma lei que não é cobrada, não é "fiscalizada", faz com que as pessoas simplesmente passam a acreditar que não seja "necessário" cumprí-la (porque cumprir leis é chato para alguns) e assim, cai em descrédito.

    Vejo o caso das leis de trânsito. Antigamente, antes da disseminação dos radares, quem iria obrigar as pessoas a respeitar o limite de velocidade?
    Hoje todos respeitam, porque acreditam na punição, ou seja, na Justiça, que vai obrigar-lo a pagar a multa.

    Eu, há vinte anos atrás, quando fui pra Europa, vi um respeito às leis, que pra mim, foi novidade.
    Mas porque existia esse respeito? Porque tudo era monitorado, e não porque as pessoas tinham uma elevada moral.
    Então volto à questão: o respeito às leis deriva da "necessidade" do seu cumprimento.
    Pelo menos no início de sua implantação.

    É claro, imagino eu, que trabalhar no STJ, você fica longe dessas miudezas do dia-a-dia.
    Mas o que é que você acha?

    Um beijo,
    Paulo.

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    Respostas
    1. Caríssimo Paulo,

      sim, concordo contigo. É isso mesmo. Quem disse que eu estou "longe dessas miudezas"? Cê não viu que é aqui no STJ onde todas as miudezas do ser humano são expostas?

      Além disso, sou cidadã, sou mãe... Vejo o Brasil engatinhando rumo a uma sociedade civilizada. Engatinhando... Nem sei se nossos filhos gozarão de um país melhor. Talvez nossos netos. É triste.

      Um beijão e obrigada por ser sempre esse fiel leitor e comentador!

      Lulupisces.

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  7. Luciana,

    Fantástica a sua sensibilidade!!!!
    Muito bom!!!!

    Andréa Lopes.

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  8. Então prima,

    eu - como policial - escuto essas lamúrias e lamentações todos os dias, de todas as pessoas, bandidos, cúmplices, vítimas, testemunhas, intrometidos (rs), chefe, colegas e até eu, quase sempre, me vejo falando sozinha, reclamando de alguma coisa. Tenho certeza que ninguém é normal. Só que alguns disfarçam melhor que os outros. No auge dos meus trinta anos, estou aprendendo a disfarçar. Entretanto, às vezes, tenho algumas recaídas...kkkkkkkkkkkkk Coisas da vida.

    Beijocas,

    Jôsy.

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  9. Muito tocante o seu texto, Lu, conscientizador...
    As lamúrias das pessoas que procuram o STJ e nos encontram devem ser tratadas com respeito e empatia, não com deboche e impaciência.

    Você está de parabéns!

    Beijo,
    Gabriela

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