Álgida lembrança





Adoro dias londrinos! Fazia tempo que Brasília não invernava como agora. Todo mundo encapotado, a maior parte reclamando. Brasileiro, não tem jeito: não quer saber de dias nublados. Não é prerrogativa só de carioca, como bem cantou Adriana Calcanhoto. É coisa de toda uma população que nasceu sob o signo tropical agreste. 

Mas como eu sou do contra, sinto um prazer incomensurável nesses dias introspectivos. É sexy colocar uma botinha e uma blusa mais pesada. Frio lá fora é sempre a desculpa ideal para ficar cá dentro, ruminando pensamentos, vendo filmes e comendo chocolates. Até os meninos parecem que entenderam o recado e ficaram comportados no domingo. Duas, três horas brincando de batalha de robôs de lego. Era quase o nirvana. 

Acho engraçada a intolerância do brasileiro para o frio. Porque, afinal, quase não temos inverno “de verdade”. É só fazer um, dois, três dias abaixo dos 20 graus que a galera começa a resmungar com mau humor. Lá no sul, vá lá. Sei que em Curitiba tudo mofa e os cinquenta tons de cinza são o padrão da cidade. Porto Alegre é bem birutinha: dias escaldantes e dias congelantes na mesma estação... 

Sampa também sabe ser geladinha. Quando morei por lá, em 1993, era difícil tomar banho em julho. As janelas antigas do apartamento deixavam passar um silvo agudo do ártico. Tentávamos tampar as frestas com toalhas. Que aflição! 

Mas falando em inverno, recordo agora de um apuro que passei em POA. Trifriaca, bá! Fui a trabalho acompanhando o presidente do STJ. Viagem chique. No hotel, havia calefação, tudo bem. Porém, ao fim das minhas obrigações de assessoramento de imprensa – com direito até a chutar uma bolinha no gramado do gigante Beira-Rio, sede do Internacional, time do então ministro-chefe-mor - consegui trocar a passagem de retorno à Brasília para aproveitar o feriado de Corpus Christi na capital riograndense. 

Fui de mala e cuia para a casa de uma espécie de prima-amiga da minha sogra: tia Helena. Uma gaúcha trilegal! Trihospitaleira. O único problema: sua casa era três vezes mais fria do que qualquer canto que eu já visitara! Encravada no centrão de Porto Alegre, na rua João Pessoa, o casarão fica espremido entre espigões, neca de sol. Ninguém resiste em viver naquele lugar, a não ser a nostálgica tia Helena, que nasceu naquele sobrado e, de lá, só sai para a morada celeste. 

Comecei a virar uma escultura de gelo. Minhas roupas não eram páreo para aquela umidade que trincava os ossos. Sorte que não havia quebrado o cotovelo até então. Teria matado a tia e o filho dela e ido ao cinema. A anfitriã percebeu o meu desconforto e me emprestou meiões de lã pesados, casacos e colocou um aquecedor elétrico exclusivo dentro do quarto de hóspedes. Todavia, nada aplacava a insidiosa invernia do meu ser.

Chega domingo. Acordo cedo, como sempre. Os donos da casa, ao contrário, são dorminhocos. Dá nove, dá dez da manhã e... Nem sinal de vida nos quartos vizinhos. Vejo que faz sol lá fora e, por dentro, estou gélida. Aquela casa parecia uma tumba! Que Deus me perdoe a falta de gentileza com pessoas tão gentis. 

Não sabia onde eles guardavam a chave da porta para a rua. Queria fugir daquela frialdade enlouquecedora. Ansiava por me postar ao sol como uma legítima candanga calanga do Centro-Oeste! Procuro, procuro e não encontro. Bate aquele desespero. Não podia ficar nem mais um minuto naquela geladeira tamanho-família.

Tomo uma decisão drástica: saltar da janela. De repente, senti o que sentem os suicidas. Aquela urgência, aquela impulsividade. Lançar-me em queda livre rumo ao fim do tormento. Abri o janelão, olhei para baixo e nem pensei direito. Suicida lá reflete na hora H? Calculei a altura como uma jornalista calcularia e pulei. 

Obviamente era muito mais alto do que meus parcos conhecimentos matemáticos poderiam alcançar. Ouvi um “crek” e pensei: ferrou-se! Destruí o tornozelo e ainda vou ficar aqui fora, nesse centrão desolado e sem ajuda. Não havia transeuntes nas proximidades e muito menos celulares, no longínquo outono de 2000. 

Manquitolando, alcancei uma grande praça. Sentei num banquinho e deixei o astro-rei me penetrar como uma lança. Eu era a própria lupa, potencializando o calor até que alcançasse os ossos e expulsasse o frio. Nem pensava mais no tornozelo. Não olhava para ele para que ele não se sentisse importante. 

Eu era a guria que pulou a janela e desapareceu. Pelo menos assim pensaram meus queridos anfitriões. Perdi a noção do tempo, pois a praçona abrigava a famosa feira de “briqueabraque” de Porto Alegre. Ali, comprei um peixe de cerâmica que enfeita até hoje a parede da minha sala. Também uma oncinha pintada em madeira, esculpida por índios kaingang. 

Tia Helena e Carlos estavam apavorados com o meu sumiço e lá vem eu, toda, toda com as minhas compras. Quando descobriram o que eu fiz para sair da casa, ficaram chocados e incrédulos. Da janela ao chão o vão era de uns dois metros. Coitada da Paula, bá, com essa nora tri bagual, tchê!



Comentários

  1. Ai Luciana, voce e suas maluquices!!! Pergunta: quando voce pulou da janela, voce pulou com a carteira tambem? Nossa mais que povo dorminhoco hein? se bem que eu nao culpo eles nao, domingo e dia frio eu tambem ficava debaixo das cobertas, so levantava para fazer tomar café e ver servir a visita tambem!!!
    Beijos, Evelyn

    Adorei as fotos dos gatinhos encapotados!!!

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    1. Claro, dear Eve!

      Pulei dois metros com bolsa e tudo! Não ia ser tão maluca assim. Só um bocadinho... :)

      Abraços,

      Lulupisces.

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  2. Oi prima!

    Por aqui, o calor continua vulcânico. Tem chovido, o que é muito bizarro pra esse mês. Mas, frio que é bom, necas.

    Nunca passei um perrengue como o seu. A minha lembrança mais gelada (e feliz) é de estar com um grupo de amigos naquela pracinha, em frente a nossa casa, lá em Inhumas.
    Era julho, não me lembro o ano, mas faz muito tempo. Éramos adolescentes. E ficamos lá, uma tarde inteira, sentindo frio e jogando conversa dentro. Isso marcou porque lembro que todos percebemos que algo de anormal estava acontecendo.
    Nunca, nenhum de nós, tinha experimentado um frio tão cortante. E a gente tava adorando.

    Valdeir Jr.

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    1. Adoro quando os meus textos resgatam boas lembranças nos leitores!!

      Obrigada por compartilhar a sua comigo, primão!

      Beijos,

      Lulupices.

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  3. Mazááááá Guria!

    O clima aqui é frio (como agora) nas proximidades e durante o inverno. Mas o coração do povo é quente.

    Kisses,

    Walton Jr.

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    1. Eu sei que é, dear Wallllllllllllton!

      Saudades de POA! E de você. Agora já estou mais preparada para o inverno sulista, caso pinte por aí nessa época do ano. Depois da experiência em NY, não sou mais uma provinciana!! KKK!!! E tenho casacos!!! KKKK!!!

      Isso é que dá ser do agreste planaltino central...

      Beijão,

      Lulua, Lulupisces.

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  4. Adorei seu texto Lu, vivenciei cada situação,até a doideira da queda...o frio que está fazendo aqui no cerradão esfriou mais ainda, enquanto lia, ele aumentava ou melhor ia diminuindo os graus e eu me encolhendo toda...uau que friaca, hein? É gostoso curtir um pouquinho, mas vai, que permanece...aí o bicho pega, até a alma congela!
    Beijo grande...gracias siempre,por compartilhar com a gente suas incríveis aventuras!
    Cynthia

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  5. Minha lembrança é muito mais provinciana... aqui em JF mesmo, outrora, fazia muuuuito frio. Hj não mais. Uma noite marcante foi quando vesti tantas roupas, mas tantas, uma por cima da outra, para conseguir dormir ao menos com a sensação de que não estava deitada na rua em cima de um jornal com apenas um cobertor fininho e rasgado por cima, que virei um verdadeiro tatu-bola e não conseguia me mexer, presa naquela camisa de força, só rolava de um lado para o outro, acordando a cada virada. Pô, ainda se estivesse em algum país gélido na europa, né, teria valido mais a pena...rsrrsrsrs

    Bjs
    Patty

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  6. que história incrível!! ri demais, adorei! Bjs, Débora

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