Chuva de prata



Quase sempre que vejo um Siena cinza, eu procuro por minha mãe. Lá estava ela, serelepe na direção. A conquista da autonomia que lhe foi tirada por tantos anos de casamento com um homem que não admitia tamanha emancipação: dirigir. No mês seguinte à morte de meu pai, mamãe já estava na autoescola. Aprendeu a guiar com 36 anos e nunca mais parou.

O Siena prata de mamãe era a extensão da casa dela: espaçoso e desorganizado. Muitos cheiros se misturavam dentro daquele carro: curral, mingau, suor dos netos, mudas de plantas, compras de supermercado, panfletos de publicidade que ela acumulava pelo carpete, sacos de roupas para doar etc, etc, etc. Uma verdadeira caixa de Maria, cheia de personalidade e anarquia.

Antes do Siena, mamãe teve um fusca azul diamante, um gol verde metálico modelo antigo e um gol amarelo ovo playboy modelo mais novo. Todavia, o Siena prata talvez tenha sido o companheiro perfeito das andanças de Maria. Discreto, simples, porém robusto. Porta-malas amplo, aberto como o sorriso da proprietária.

Carro que nunca lhe deixou na mão em suas idas e vindas da fazenda. Lama e pó, terra. Mamãe, signo de capricórnio. Os porteiros do meu prédio sofriam para devolver o brilho prateado ao quatro portas. Lustrosidade que mal durava até a próxima semana.

Começo a acreditar que o Siena prata é um veículo que atrai vovós enxutas e traquinas, pois estou sempre a esbarrar com algumas delas aqui e acolá. E quando um desses carrinhos entra na minha quadra, mesclando esperança e desalento, eu quero acreditar. Mamãe já está chegando para ver os meninos! Para trazer um presente! Para assistir à novela!

Mas não é a mamãe... Apenas outra coroa descolada, mãe de outra felizarda, avó de outros netos sortudos. Entretanto é inevitável checar para ter certeza. Impossível não pensar que tudo deveria ter sido diferente... E hoje, ao dar ré em seu Siena prata, aquela senhora que quase me atropelou bem que podia ser Maria aprontando mais uma de suas molecagens.

P.S.: Agora eu vou vender esse roteiro para a Fiat fazer um daqueles filmes publicitários em tom sépia que dão nó na garganta e ganham prêmios em Cannes.

Tema do post:

http://www.youtube.com/watch?v=EqWLpTKBFcU


Comentários

  1. Bom dia Lu!

    Bateu uma saudade aí neste coração? É Lu, a saudade é um sentimento ardil, na realidade doloroso se tratando de mamãe...

    Mas faz parte da vida sofrer perdas insubstituíveis. Pessoas que passam pela nossas vidas deixando suas marcas num ir e vir infinito...
    Mas nunca niguém nos ensinou e nunca aprenderemos como reagir diante da saudade que algumas pessoas deixaram em nós. (como nossa Mãe!)

    Beijos,

    Leila.

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  2. Você conviveu com ela por 40 anos. Eu nem cheguei a conhecê-la. Sempre que você fala dela me bate um arrependimento pelas oportunidades que tive e não aproveitei.


    Quanto a vender sua ideia, aprovo e incentivo. Qualquer sopro de inovação na comunicação de carros vai ser bem-vindo.

    Valdeir Jr.

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  3. Ficou bem legal o texto. Parabéns!
    Tô com saudades da "véia" também... Vez ou outra me pego em pensamentos com ela...

    Bj,

    Rodrigo.

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  4. Agora vou me sentir mais imponente no meu Siena prata...

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  5. Bateu saudade, neh Luzinha? Ainda bem que vc escreve, cria, transforma. Sublimar dor sem remedio eh um caminho bom. bjus Isa

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  6. Lindo e real texto minha irmã.

    Dói muito a ausência da nossa iluminada mãe (" um oco dentro vora..."). Esta falta será eterna e muito dura. Mas é muito bom lembrar dela da forma como ela com certeza gostaria que fosse: com leveza e beleza, além da inquebrantável alegria e força de viver. Mamãe é única e pura luz. Não dá para esquecer um segundo sequer dela e como fomos felizardos em tê-la por todo esse tempo que nos foi permitido. Pois, infelizmente, mães morrem e nos deixam assim, mais que órfãos, com um vazio que não preenche nunca, a não ser com as boas lembranças, as fotos e tudo que nos faz recordá-la, sempre num misto de dor e alegria.

    Beijo forte irmã e que bom que você escreve e escreve bem. De forma forte, cheia de sentimento, aromas e sabores. De modo tocante, fundo. Gosto do que você escreve, esta profusão de cores, com alma, entranha aberta ao mundo. A gente sempre corre o risco de se machucar assim, mas com certeza, vive intensamente e isto não tem preço!!

    Grande abraço e te amo !!

    Marilena

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  7. Minha mãe ultimamente não tem aparecido nos meus sonhos, porém, só de pensar que sua estada nesse mundinho de meu Deus foi uma bela realidade, agradeço a Ele todos os dias não apenas por isso, mas principalemente pelo privilégio de ter sido filho de uma criatura mágica.

    Grande abraço do Regis(Bama)!

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  8. Fiquei tentando lembrar (em vão, pq nunca reparo em carros e mesmo que reparasse, minha memória é "ótima"), em qual deles D. Maria estava na última vez em que a vi, indo nós passarmos aquela linda tarde na casa da sua irmã. Gosto de saber que tenho essa memória exata, porque foi um dia marcante. Poderia não me lembrar, ser um momento perdido nesses anos de distância. Mas não, eu sei. Agora, o carro da época....

    Bjs
    Patty

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  9. LU,achei maravilhoso o texto sobre o Siena Prata, é um ótimo carro,já tiver um.Realmente sua mãe, tia minha,era tudo isso e muito,muito mais e...parece que ela está ao nosso lado,sempre sorrindo e distribuindo o seu bom humor.Gostei,mande para a FIAT e negocie bem sua idéia.
    Bjos,

    Eni

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    1. Querida prima,

      entrou no blog!!!! Fiquei muito contente com a visita e o comentário!! Ando um pouco relapsa para escrever... Costumava publicar três textos por semana e agora estou aí nessa preguiça. Mas acho que vou escrever algo hoje.

      Apareça sempre que puder e comente sempre que quiser!

      Abraço apertado,

      Lulupisces.

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  10. Lu,

    Linda esta sua amizade com a mamãe. Dá uma saudade que parece não ter fim, não é? Mas não se preocupe, ela está bem e, se estiver liberada, acompanhará bem de pertinho suas idas e vindas bem como a dos meninos. E fará isso a bordo de seu Siena astral, agora na versão luz de prata.

    Papai do Céu sempre nos dá a oportunidade de reencontros após a "separação" inevitável porém necessária (difícil de entender para nós terráqueos).

    No mais, fico aguardando o lançamento de seus dois livros: um com seus contos que encantam a todos aqui no blog e o outro com as levadices e pérolas de seus filhotes. Os dois primeiros de uma série, claro...

    E por falar em pérolas, meu filho saiu com uma que viu no Facebook: a felicidade não é para guardar, é para consumo imediato. Boa!

    Beijocas carnavalescas

    Marcita

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    Respostas
    1. Marcita do meu coração,

      estou voltando para o STJ, sabia? Agora, pós-Carnaval.
      Que lindas as suas palavras!! Adorei a imagem do "siena astral na versão luz de prata". Maravilha!!!

      Obrigada pelo carinho de sempre!! Vamos poder nos ver com mais frequência novamente. E vamos aplicar o que seu filhão descobriu no FB: consumo imediato de alegrias!!!

      Beijão,

      Lulupisces.

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  11. Lú, lindo o jeito de você lembrar da sua mãe. Esse amor de filho pra mãe não tem preço. Quem tem a sua mãe viva que dê o valor que ela merece, que expresse, que cuide, que curta enquanto há tempo.Ainda bem que as lembranças não acabam nunca, pois servem de afago nos momentos de saudades. Beijo.

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  12. Lu,
    Adoooro quando você escreve sobre a D. Maria, me emociono fácil, choro mais fácil ainda... Parabéns.
    Beijo da amiga Mônica

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