Pedalando com Potter e Cora Coralina








Para Monsieur Rodrigô, 
que ouve todas as minhas insanidades sem a aquela cara que parece estar dizendo: e eu com isso? 
(Mario Quintana com adaptações de quem escreve esse blog). 



O conjunto de tubos metálicos agora está por toda parte. As duas rodas com seus raios concêntricos parecem dois sóis a refletir o astro-rei nesses dias insanos de calor. Para onde se olha, lá está uma bicicleta refutada. Às vezes, em pé e digna, aceita com altivez sua sina de objeto de consumo fácil. Noutras, jogada ao chão, retorcida. Corpo inerte, estendido sobre a folhagem ressecada. 

Sinto comiseração pelas bikes ao relento. A imagem estática e solitária das magrelas nos mais inusitados pontos da cidade me dá certa angústia. Remete às cenas de abdução, de extermínio, de ataque nuclear que costumamos assistir no cinema ou na TV. 

Num átimo, toda a humanidade desaparece sem aviso e sem piedade. Resta apenas a certeza de que estavam ali um minuto atrás. Mulheres e homens pegos de supetão, interrompidos no trajeto que ainda precisavam concluir. Quem eram? Que roupas vestiam? Para onde iam? Sofreram? Estariam contentes? Suavam? Usavam capacetes? 

Você vai revirar os olhos e pensar: coitada, vê filmes demais. Sim, vejo. Quando externo minha observação sombria, o amigo ri e discorda: pois eu gosto de ver as bicicletas espalhadas por aí. Me dão uma sensação de liberdade. Eis a comprovação de que todo indivíduo assimila a rotina da existência conforme suas próprias experiências acumuladas, traumáticas ou não. 

A questão do abandono bate forte em mim. Fato. E o desconforto que sinto ao presenciar as amarelinhas usadas e descartadas em qualquer canto fazem a cicatriz comichar, tipo assim a do Harry Potter ao pressentir Voldemort. Ou talvez seja mais avara do que acredito: tenha necessidade de reter, não de deixar ir.

Imagino quantas vagas de emprego descolados perdi com as neuroses detectadas pelo então popular (na década de 1990) teste Rorschach, aquele do “borrão de tinta". Pensem nas minhas projeções ao ser exposta à sucessão de dez cartelas com manchas em negro e cinza? O medo de ficar sozinha em casa à noite; a eterna “síndrome de impostora” a me dizer ainda hoje, mãe e à beira dos 50, que estou sempre fora do contexto; a pecha de enjeitada como Cora Coralina (temporã e órfã de pai ao nascer) muito bem poetiza e eu muito bem me identifico. 

Tá explicado por que no serviço público tem tanto desajustado. Faltam psicotécnicos porretas para todos os cargos. Capaz que eu não tivesse ingressado, gente. Mas hoje as provas não precisam ser tão enigmáticas. Basta mostrar umas fotos das bicicletas Yellow ao acaso. Peça para o candidato exprimir o que sente, o que lhe passa pela cabeça. Pode ser caso de texto ou de internação. 


Comentários

  1. Como diz a Clarice Falcão, que vai cantar esse sábado na Piscina de Ondas, "a sua loucura parece um pouco com a minha".
    ;)

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  2. Lu, "de perto ninguém é normal", e que sensacional. Empatia você tem de sobra até com as "magrelas" ou "camelos" 😘😍 e isso é muito raro 💞

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  3. Eu adoro ver os lugares inusitados em que são abandonadas as amarelas!! Fico pensando que alguém pode achar ótimo encontrá-la justamente ali...

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  4. Passou no teste: és escritora, personalidade e técnica. Tuas projeções estão fadadas a guiar muitas reflexões.

    Wainer Martins

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  5. Cara, que texto lindo (só não gostei do "poetisa"). Mas chegou a bater um vento aqui, e aquele barulho gostoso do pedalar numa bicicleta de sonhos.

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    1. Desculpe o embaraço das lentes dos meus óculos, não percebi que você escreveu "´poetiza" no correto tempo verbal. Bom, então só me resta comentar que o texto é belo por inteiro.

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  6. eu gosto muito da leveza da sua escrita (até quando me faz chorar)!!!

    Bianca Duqueviz

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