Aos que ficam




“Quem é que quer flores depois de morto?” 
(J.D.Salinger) 

Desde muito pequena convive com defuntos. Não, não é daquelas que veem fantasmas ou têm premonições funestas. Ela não vê gente morta, só sabe que a ausência delas é presença quase física, bloco de concreto no meio do caminho que precisa ser refeito em atalhos mais serenos. 

O pai foi o primeiro de cujos que teve de aprender a decifrar em tenra idade. Como alguém que não estava perto dos olhos podia fazer tanta falta ao coração? Ainda na infância também houve o padrinho, uns tios e o avô materno, o único dos avós que chegou a conhecer. Acostumou-se a velórios e a enterros, portanto. 

Sem falar naquela “tia” por afinidade, a vizinha de bloco, Denize Cellano, uma bruxa boa que lhe acolhia para aulas de artesanato e para curativos nos ralados oriundos da molecagem de rua. Passou, então, a pensar que a vida era feita de precoces e constantes perdas. 

Na adolescência, teve certeza: o segundo pai morre de repente, num trágico acidente. Começa, então, a detestar o odor acre das capelas de cemitérios. A repudiar a breguice das tais coroas de flores. 

O adeus ao pai de uma grande amiga, à sobrinha ainda criança, ao amigo de infância do irmão, também seu amigo... Levava um vasinho de flores meio sem jeito, meio sem achar que era a oferta certa a fazer naquela situação dolorida e sem sentido, apesar de compreender a importância dos ritos de passagem. 

“... quem sabe a morte, angústia de quem vive”... 
(Vinicius de Moraes)

Deixava a oferenda ali do ladinho e se afastava. Mortos no caixão parecem caricaturas de filmes de terror. Essencial é reter uma lembrança vívida de quem nos tocou; de seus sorrisos e de seus defeitos que ganham, subitamente, roupagem saudosa divertida, por mais que fossem capazes de nos irritar na lida do relacionamento.

Ao se tornar mãe, despediu-se da madrinha e da própria mãe. Estava tão habituada às necrópoles que resolveu inovar: fez leitura elogiosa de corpo presente para as duas mulheres mais importantes da vida dela. Percebeu que era preciso mudar a atitude nos momentos fatídicos da existência. Torná-los menos mecânicos, menos convencionais. Não levou flores. 

Leu, engasgada, mas leu, e deu o tom de ritual americano ao velório verde-amarelo. Na pegada ianque, chamou os mais íntimos para almoçar galinhada, prato da cozinha afetiva maternal, na casa dela, a filha enlutada, porém aliviada pela ressignificação dos “meus pêsames” mais difíceis de sua longa lista de cerimônias fúnebres.

"Não te trago ouro
Porque ele não entra no céu
E nenhuma riqueza deste mundo
Não te trago flores
Porque elas secam e caem ao chão
Te trago os meus versos simples
Mas que fiz de coração"... 
(Chimarruts)

Depois de ficar completamente órfã, tirou de letra o jogo de cena dos demais sepultamentos. Estava mais do que diplomada, pós-graduada no tema. Poderia virar consultora de velórios hype e deu-se o direito adquirido de jamais fazer parte de outros cortejos, a não ser que sejam de pessoas fundamentais para ela (que espera, esperançosa, demorem a pintar por aí). Decidiu, também, que a cremação é a opção que mais lhe representa quando a hora dela chegar. 

Atualmente, comparece a alguns velórios, fica o tempo suficiente para abraçar os queridos a sofrer e a chorar, acompanha o Pai-Nosso ou a Ave-Maria e se vai. Não sem antes entregar o que acredita ser imprescindível nos agudos do desespero e do luto: uma barra de chocolate, um bombom, uma literal doçura aos saudosos e feridos pela morte, essa traquina voraz. Isso porque pensa ser os viventes os merecedores de rosas e de crisântemos, não os que partem, pois do lado de lá pressupõe-se que já seja bem florido, não é verdade? 

“Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida, 
morremos de morte igual,mesma morte severina: 
que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, 
de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia 
(de fraqueza e de doença é que a morte severina 
ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)”. 
(João Cabral de Melo Neto) 



Comentários

  1. E Lulu a dor da última despedida vem acompanhada de uma saudade sem fim sempre😓🥰

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  2. É isso Lu. A morte só dói porque permanecemos vivos. Isso não deixa de ser uma boa notícia, não é mesmo? Também só vou à velórios pelos vivos. Nem chego a olhar o personagem principal do evento. Prefiro guardar na memória o sorriso e o brilho no olhar de quando estavam entre nós.

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  3. *estava.
    A propósito. É Ana Cris! rsrsrs

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  4. Meu Deus, chorei muito! Palmas!

    Bianca Duqueviz

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  5. anna.lima@condor.ind.br13 de setembro de 2019 às 10:20

    Rituais, para Augusto foi muito importante aquele ritual do velório do pai, ver tanta gente reunida, ele me disse que nunca imaginou o qto o pai era querido, cada abraço que recebíamos nos dava mais força. Sou também a favor da cremação! Lindo texto e sempre nos toca a alma.

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  6. Super concordo. Pode me dar muitos chocolates ou chocolates aos meus. E música!

    Carmem Cecília

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  7. Vc sabia que sou ou era(pois não quero ser) sensitiva?!
    Eu literalmente via mortos e ouvia algo que não codificava.
    É uma sensação ruim, e logo que eu os via, o mais breve e fatal acontecia.
    Foi assim logo criança, mas precisamente aos meus 5 anos, com o vovô Zequinha. Claro que eu não entendia o que era aquilo, mas era assim.
    Depois minha tia Ana Luci, tio Altemon, o acidente com o tio Cândido e tia Isabel e por aí vai. Isso me incomoda.

    Djelaine Castro

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  8. Gostei, lembrei muito das minhas próprias experiências, só com a diferença de que eu continuo indo a velórios e enterros e fico até o final, acho que traz conforto aos amigos, pelo menos eu assim me senti.

    Mônica Ramos Emery

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