Terceira dimensão






(...) “Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior…”
(Caetano Veloso)


Os sonhos ainda revisitam as curvas e a companhia das montanhas das rodovias do norte argentino. Algo muito profundo ficou em mim dessa viagem pela qual não havia gerado nenhuma expectativa e se mostrou uma road trip intensa, um lance de conexão de alma com a ancestralidade. Primeiro encontro com as minhas raízes indígenas que, por algum mistério, estão mais para uma linhagem hispano-americana do que brasileira.

Seria interessante conhecer a árvore genealógica da minha família paterna e descobrir de onde vem o fenótipo que me faz ser confundida com paraguaias, nicaraguenses, panamenhas, equatorianas, peruanas, colombianas… Infelizmente, não há memória preservada nesse sentido. Pouco restou do meu próprio pai e quase nada de seus pais, avós, bisavós...

Ao pé da Cordilheira me senti totalmente em casa, como se ali fosse meu lugar de fala e, mais ainda, de cala. Tudo o que eu precisava era estar ali, de frente para um vale formado por templos de vento frio. Senti paz, acalento e acalanto. A angústia existencial que nunca me abandona se retirou de cena. Fiquei inteira. 

Você entra numa viagem de bobeira para conferir eclipse (fenômeno que nunca chamou a sua atenção de forma especial) e dá de cara com o núcleo da sua natureza. Taí, gostei. Rolou um processo terapêutico: a cura sem você racionalizar que está fechando ciclos ou feridas. Imersão, emersão. 

Até esse texto, que era para ser outro texto, mostra a vontade de absorver e entender o que está se passando aqui dentro. Eu deveria ter começado a escrever: quando se pensa em eclipse, logo nos vêm à cabeça astrônomos e astrólogos. 

Sim, os estereótipos nos confortam, mas, geralmente, provam ser incipientes. De todo modo, foi assim que me lancei à aventura de me deparar com pessoas desconhecidas num evento inédito. “Festa estranha com gente esquisita”.




Aprendi que rola de todos nesse grupo de aficionados por eclipses. De médica legista a engenheiro hidráulico, de técnico de som à agrônoma, de tenente a coronel, de perito geneticista à jornalista. Não é preciso ter profissão para ser um apaixonado pelo céu. Elementar, cara Luciana. 

Seja qual for a rotina de trabalho do caçador de eclipse, eles têm uma marca em comum: foram fascinados pela abóboda celeste desde crianças. Queriam entender as constelações, os planetas, as estrelas e as crateras lunares não de forma lírica, porém científica.

Eu gosto de céu, da lua, das estrelas e dos planetas. Me amarro nesses papos divertidos de astrologia e mapas natais. Misturo as duas estações: ciência e esoterismo sem preconceitos, para desespero de um marido físico. Todavia, gostar é uma coisa, amar é outra. E quando você esbarra com gente que ama, tudo ganha terceira dimensão.

Esses enebriados amantes correm mundo atrás de eclipses totais do sol. Nessa viagem ao coração da argentina erma, conheci um americano que estava registrando o seu 19 evento. Como são acontecimentos bienais, o cara está há mais de 30 anos a fotografar e a filmar a lua se intrometer, incisiva, na conversa diária entre o sol e a terra.




Herbert Vianna afirma: “o céu de Ícaro é mais bonito que o de Galileu”. Após conhecer essa trupe, tenho minhas dúvidas. Sendo 110% poética, vi muita beleza entre os conhecedores de eclipse que, com seus apetrechos tecnológicos e precisos, suas informações especializadas, detalhadas e acertadas, me ofertaram sensibilidade e emoção em cada etapa dessa missão: captar e gravar um acontecimento astronômico raro e deslumbrante. 

Entendi que todo o conhecimento que acumulam e compartilham de eclipse em eclipse com outros enamorados; o reencontro que se dá entre gente do mundo todo em paragens alhures, com divertida camaradagem, e a alegria de realizar mais um objetivo e se preparar para o próximo são, em si, um poema em movimento, em perene construção. Uma saga épica que os realizam e os transformam em pessoas mais brilhantes. 

Estrela cadente (revi uma nesses céus andinos, que sorte), cometa fugaz que sou, me deixei arder pelo fervor desses exploradores do espaço e peço bis.






Comentários

  1. Que delícia de texto, Lu!!!! Parabéns!!!!

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  2. E nós agradecemos por compartilhar com riqueza de detalhes essa road trip sensacional. Fotos e legendas que nos levavam juntos ao seu emocionante encontro com sua provável ancestralidade. 🌹❤️

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  3. Maravilha, Lu! Sabe que tive tb experiências nesse nível de conexão profunda com esse nosso céu,que pulsa tb dentro da gente, só que em paragens diferentes, mas creio que apenas em localização física... Estávamos nós tb ao pé de montanhas majestosas e mágicas da Mantiqueira a -4 graus, com um firmamento sobre nossas cabeças de tirar o fôlego, e nunca me senti tão inteira.

    Cynthia Chayb

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  4. Luciana, muito legal.
    Que experiência!!

    Paulo Magno

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  5. Que bacana!

    Juliana Cauchik

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  6. Ahhhhhhh! Quanta poesia em suas palavras!!! Delícia ler as suas experiências! Suas fotos no face arrasaram muito também! Valeu por dividir conosco tudo isso!

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  7. Lu adoro o jeito de como vc descreve suas aventuras!

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  8. Esse negócio planejar escrever uma coisa e sair outra é muito doido!
    Eu com meu diário tô vivendo a mesma coisa.
    É texto rascunhado e nunca parido; é texto finalizado em minutos de gestação; é texto que passa meses amadurecendo... eu, hein! Haja química envolvida.
    Digo

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  9. Muito legal ! Dois textos em um 🙂
    Gostei mais da primeira temática.
    O DNA dos indígenas brasileiros tem revelado surpresas ... quem sabe não são todos parentes de algum ancestral que chegou pelo Pacífico?

    Karla Liparizzi

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  10. “Todavia, gostar é uma coisa, amar é outra. E quando você esbarra com gente que ama, tudo ganha terceira dimensão.”

    Bravíssimo dona Pisciana com coisas em leão!!

    Grato por tanta poesia

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