Fímbrias devoções




Os argentinos são fervorosos, sanguíneos e católicos, ainda.

Nos grandes sertões das províncias de Mendoza, San Juan e La Rioja, demos de cara com o nonada e também com demônios dentro de redemoinhos, ruínas, esqueletos triássicos e cidadezinhas encravadas no semiárido, a comprovar que surpreendente é mesmo o ser humano: sempre capaz de habitar lugares impossíveis.

Nessas paragens, os templos evangélicos são tímidos ou inexistentes. O país do papa Francisco é das igrejas de torres e sinos, das procissões, dos santos e das quermesses. Caminhando junto com as manifestações religiosas há, por supuesto, as superstições e os milagres operados por seus milagreiros extraoficiais, distantes dos altares formais, porém bem próximos dos corações alvicelestes.

Durante todo o trajeto pelas rodovias insólitas e solitárias do norte argentino, a gente se depara com capelinhas na beira do asfalto. A princípio, pensamos em homenagens aos entes amados que perderam a vida no trânsito, costume comum no Brasil, mas não. Ao olhar com mais atenção, dois nomes se repetem nas placas: Difunta Correa e Gauchito Gil.

Os oratórios em honra de María Antonia Deolinda Correa são rodeados de garrafas pet cheias de água. Em alguns deles, há centenas delas, mais parecendo um lixão de plástico a enfear as belas paisagens montanhosas. Intrigados, descobrimos que se trata da devoção a uma jovem mãe que, abandonada pelo marido, obrigado a alistar-se para combate na guerra civil de 1840, entra em estado de penúria e resolve, desesperada, sair daquele fim de mundo desértico à procura do amado pai de seu filho. 

Uma retirante e seu rebento recém-nascido a atravessar vales e picos amedrontadores; leitos de rios secos e vegetação espinhosa (eu me espetei num desses arbustos e a dor é aguda). Uma imigrante forçada pela miséria e a fome a se deslocar da terra-natal para salvar a sua cria. Entretanto, a mulher sucumbe à desidratação nas vastidões ressequidas. Encontrada por mascates ou tropeiros, o bebê agarrado ao peito permanecia mamando, vivo! 

Macabro, terno, mórbido. Cena tão absurda que tem jeito de lenda. Todavia, sabemos o quanto a realidade pode ser mais concreta do que qualquer ficção. Por isso, os motoristas-devotos depositam as garrafas cheias de água para a guerreira Correa. Uma maneira de acreditar que o milagre do amor mantém o pulso da existência diante das mais bárbaras adversidades. 

Já os santuários erigidos ao Gauchito Gil esbanjam bandeiras e fitas vermelhas. Um ponto efusivo na paisagem geralmente ocre e cinza. Antonio Mamerto Gil Núñez, ou simplesmente Gauchito Gil, é talvez o santo mais popular entre os gaúchos, apesar de não ser reconhecido pelo Vaticano.


Das várias versões de sua história, a mais contada é de que haja sido recrutado pelo Partido Autonomista na "Guerra Corrientina" e desertado. Como a deserção era um crime punido com a pena capital, foi condenado à degola. Pouco antes de ser executado, disse ao carrasco, que tinha um filho muito doente, que esse rezasse pela vida do garoto invocando o nome Gil e, assim, o menino seria curado. O algoz seguiu as orientações da vítima e seu filho se recuperou. Pronto, nascia a crença do povo.

Dessa imersão na Argentina profunda, descobri que os vizinhos ao sul são mais passionais do que nós. E, sem dúvida, nutrem um certo fetiche por cadáveres (e eu pelas fábulas deles). Numa viagem anterior, soube pela guia do cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, que o corpo embalsamado de Evita Perón havia sido roubado, reencontrado, enviado ao exterior para evitar que sofresse outras profanações e, finalmente, trasladado ao país de nascimento e devidamente sepultado ali. Bizarro. 

A narrativa da "Difunta Correa" não deixa dúvida de quanto los hermanos podem ser bisonhos. A cena tétrica de um corpo lívido a alimentar uma criança é um tango visceral e lancinante. Seus acordes ficaram na minha cabeça por dias, até hoje, quando cessam de me assombrar e passam a assustar você.

Comentários

  1. Buuu! Sou a noiva cadáver! Adorei!

    Thalynni

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  2. Belíssimo texto, Lu! Fiquei relembrando nosso passeio e as estradas portenhas.

    Isabel Viegas

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  3. Apesar de ter ouvido as histórias da Difunta Correa e do Gauchito Gil, a leitura do texto me transportou à época em que tais fatos ou fábulas teriam acontecido. Obrigado, Lu.

    José Ricardo Melo

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  4. "Passam a assustar vocês" é ótimo!!! rss. Assustado não, porém impressionado com a riqueza de seu texto. Fico "viajando" em suas "viagens". É fantástico. Deixo uma sugestão, para mais um passeio em terras de um povo fervoroso, sanguíneo e católico: visite o Perú!

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  5. Excelente texto! Muito cativante! Parabéns!

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  6. Pego carona nas suas viagem Lu, já que não viajo tanto!

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