Missiva para um jornalista de Campo Grande



Foto perfeita de Inácio Galvão



Planalto Central
30 de julho (aniversário de nascimento de Mario Quintana), de 2019.

Caro Dante,

realmente o livro de Amós Oz é estupendo. “A Caixa Preta” nos dá aflição e diversão simultâneas. Obrigada por me fazer lembrar que a obra estava aqui na estante, esperando para ser lida. O que nos leva a gostar de um escritor a ponto de ler tudo ou quase tudo dele? Seria um processo consciente ou não? O que você me diz?

No caso de Oz, há uma identificação entre Israel e Brasília: uma espécie de forçação de barra, uma artificialidade encravada no meio do nada. Quando ele descreve Jerusalém parece haver passeado pela aridez da minha terra-natal.

Minha primeira fixação literária foi Agatha Christie. Uma de minhas três irmãs fazia parte do Círculo do Livro, num tempo em que as livrarias eram escassas na capital da República. “Um Gato entre Pombos” me chamou a atenção, afinal, era assim que eu me sentia sendo uma filha temporã e órfã de pai. Tomei gosto e li um bocado das investigações de Hercule Poirot. Só gostava dele, não da Miss Marple. Você curte literatura policial?

Depois, encuquei com Clarice Lispector. Pedi livros dela como presente do amigo oculto familiar. Ganhei três embalados para presente de um dos meus cunhados. Nessa época, também não parei mais de ler Mario Quintana. Aliás, Mario tem acento ou não? Sempre me pego na questão. 

Da Clarice para a Lygia Fagundes Telles me pareceu uma transição natural. Li tudo, romances e contos. Magnânima. Você gosta dela? Quais escritores fisgaram você na juventude, se não for audácia minha perguntar.

Um que me pegou de jeito foi Umberto Eco, com o seu “O Nome da Rosa”. Mamãe se sacrificou (livros eram muito caros para uma viúva com sete filhos), mas ganhei de presente dela. Sempre gostei da Idade Média, só não imaginava que ela voltaria ao Brasil no século 21.

Aos 19 anos, li “Grande Sertão, Veredas” pela primeira vez, emprestado pelo pai de uma amiga. Arrebatador. Nunca mais consegui deixar de citá-lo ou de compará-lo com o todo o restante da literatura mundial. Pena a obra ser praticamente intraduzível. Chato o Português limitar o raio de alcance de nossos escritores bacanas pelo mundo, não acha?

Lembrei agora do caso de plágio que aconteceu com o ótimo Moacyr Scliar (também tive uma fase de amor por ele). “Max e os Felinos” virou a “A Vida de Pi”, bestseller global, filme de sucesso e seu autor, Yann Martell, confessou haver “furtado” a passagem mais importante do livro de Scliar (o tigre e o rapaz sozinhos, no barco à deriva), sob a justificativa de que era uma ideia muito boa para ficar restrita a um “livro menor”. Que ódio que me deu!

Pois então, li muito de Guimarães Rosa nesses anos e também me encantei por “Anna Karenina”. O deslumbramento foi tão fulminante que, na sequência, dei cabo de “Guerra e Paz”. Você prefere Tolstoi ou Dostoiévski ou nenhum dos dois? Nunca consegui gostar do último. “Irmãos Karamazov” e “Crime e Castigo” foram projetos abortados logo no início.

Falando nisso, você sente culpa por desistir de ler alguma coisa? Estranho a gente achar que tem obrigação de conhecer todos os clássicos. Leva-se tempo para entender que a vida é pouca e a gente deve fazer o que gosta quando já somos obrigados a fazer tanto o que não queremos, não é?

Na época da universidade ainda rolou uma paixonite por Gabriel García Márquez iniciada com “Cem Anos de Solidão” que, aliás, foi o primeiro livro que dei presente para o meu então recém-namorado (que acabou virando marido). Devorei várias obras do colombiano prêmio Nobel de Literatura. 

Antes de encontrar o marido e o realismo fantástico de Gabo, preciso pontuar que “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, não fulminou só a mim, mas aos meus dois melhores amigos da adolescência. A gente passava as aulas chatas de exatas pensando em Rosa dos longos cabelos verdes. Era uma droga, chapamos e lemos em comboio outros títulos da autora chilena. Resultado: a completa ignorância em Física, Química e Matemática.

Me conta, você também já teve esse tipo de alucinação coletiva? É tão gostoso quando uma obra extrapola o bidimensional e vem para o seu lado, corporificada. Aqueles livros que você não quer terminar de ler porque não vai mais encontrar outro igual na vida. Me diz, Dante, quais histórias lisérgicas lhe roubaram a alma? Sei que você se apaixonou pelo “Os Sertões”, mas antes de ser capaz de apreciar uma leitura tão distinta, quais foram os seus livros de formação?

Dias atrás iniciei meu primogênito em Rubem Fonseca. Ele já leu Lygia, gostou, mas ainda é novo para Clarice. Talvez a odeie, vá saber. O caçula não quer nada com ficção e foi taxativo:

- Não gosto desses livros que a gente não aprende nada!

Entre o choque e a graça, dei um sorriso nervoso e tentei explicar que os romances nos dão asas para voar, mais vocabulário e outras lorotas. Ele não viu especial vantagem nisso e segue lendo sobre corpo humano, rochas, neve, barcos e demais tecnicidades. Quem sabe um dia seja laureado com um Nobel de Física ou de Medicina... E seus netos, já gostam de ler igual ao avô?

Enquanto isso, mantenho minha leitura diária de poesia para não cair nas garras do cartesianismo. Pode ser de Adélia, Hilda, Manoel de Barros, Drummond, Emily Dickinson ou da safra contemporânea e desconhecida do público. Poema todo dia faz bem pra saúde. Você lê o quê para não sucumbir à rotina?

Prezado amigo virtual, essa carta já se alongou demasiado para um planeta com pressa. Peço desculpas. Não é sempre que a gente esbarra com gente da mesma espécie, dessa que ainda se encanta com a literatura. Me despeço, porém não antes de lhe sugerir a leitura de “A Elegância do Ouriço” ou de “Senhorita Smilla e o sentido da neve”, caso ainda não haja experimentado esses prazeres. 

Dica de leitura preciosa com preciosa dica de leitura se paga, certo?


Cordiais alegrias,
Luciana. 



Comentários

  1. Luciana, cara amiga
    Sua carta me comoveu. Recomendei “A Caixa Preta” porque talvez tenha sido um dos melhores romances que li até hoje. Fico feliz que tenha sentido as mesmas aflições ao percorrer o texto epistolar de Oz. Ali descobri que também podia escrever um livro. Ali descobri que a literatura não precisa ser pétrea para ser boa.
    Como você percebeu gosto da linhagem do realismo russo, com texto limpo, frases diretas, narrativa clara. Também gosto de Flaubert, Sthendall e muitos outros. Fui fã ardoroso de Ruben Fonseca, mas deixei de lado porque ele vicia e a gente entra numa de querer imitá-lo.
    Tenho lido Bolaño e um uruguaio, Mário Levrero, que escreveu o “Romance Luminoso”, uma das coisas mais loucas que li em minha vida. Leia, você vai gostar.
    De Tolstoi prefiro Ana Karenina, Ressurreição e Padre Sérgio. “Guerra e Paz” é soberbo, mas cansa.
    De Dostoiewsk prefiro “Crime e Castigo”, “Memória da Casa dos Mortos”, “O Jogador” e outras novelas. Você já leu “Almas Mortas” do Gogol? Sensacional.
    Nestes meus mais de 60 anos foram tantos livros, tantas desistências e decepções que, às vezes, tenho vontade de rever tudo para ver se mudo de opinião ou de ideia sobre autores do passado. Claro, teria que viver outra vida.
    Uma vez Borges escreveu algo que não esqueço: prefiro ler a escrever porque muitas vezes não gosto de tudo que escrevo, mas posso optar por ler tudo aquilo que amo. Algo assim. A leitura é escolha. O ato de escrever é limitado pelos impulsos e talentos. Mas ninguém escreve sem ler. Esse é o drama. O que escrevemos são a soma e a síntese de nossas referências estéticas, mas a nossa experiência interna e externa torna-se fator limitante do nosso alcance poético.
    Por isso é difícil, leva tempo, exige paciência...
    Por isso, estamos sempre imitando alguém, sendo influenciado por nossos gostos e preferências.
    Quando você apresenta a um amigo (a) sua biblioteca, na verdade, está revelando sua alma.
    Dá medo. Mas também dá alegria.

    Um beijo, Dante Filho

    ResponderExcluir
  2. Caramba, que troca literária das MAIS supremas, nem me atrevo a passar perto, ainda que conheça quase todos os autores. Li muito menos livros do que queria, não sei por quê. Essa tertúlia epistolar me pega em meio a apontamentos para um curso sobre Clarice e a expatriação, o desterro corporativo contemporâneo. Vou pensar muuuito nessas duas cartas hoje! Obrigada por abrirem suas incríveis bibliotecas!!!! Saludos de CDMX 😘

    ResponderExcluir
  3. Que troca de missivas deliciosa. E pensar que eu juntei esses dois! Querida Luciana, retribuo a você a dedicatória que você me brindou em seu encantador livro: "Nunca lhe vi, sempre te amei".
    Um prazer fazer parte desse encontro virtual tão frutífero.

    Ângela Maria Sollberger

    ResponderExcluir
  4. Que texto lindo! Se eu fosse o Dante, derreteria de emoção. Peguei algumas dicas, suas e dele na resposta. Tenho Oz jogado em algum canto (daqueles livros que a gente compra e depois esquece) e estou agora à procura desesperadamente.

    André Luiz Alvez

    ResponderExcluir
  5. Quanta cultura , hein, amiga?

    Cynthia Chayb

    ResponderExcluir
  6. Linda carta, você é uma literata porreta!!!!

    Ana Cristina Aguiar

    ResponderExcluir
  7. São sempre bem traçadas as "mal digitadas linhas".

    Rosângela Maria de Oliveira

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos