Átomo puro de carbono



Primeira viagem dos pais de primeira viagem. Agosto de 2004. O bebê de quatro meses na bagagem, que era muita, com carrinho, fraldas, dezenas de macaquinhos, pagãs e mantinhas. Ao menos não era preciso se preocupar com as papinhas. O filho só se alimentava de leite materno. 

A avó e a tia-avó maternas foram convidadas a participar da aventura. Que recém-mãe não quer os conselhos e cuidados de outras mães mais experientes? Sei lá, há mulheres que não admitem “pitacos familiares” na maneira como cria os rebentos. 

Ela, não: sempre deixou as portas abertas e pediu ajuda. Família é isso: chateação e zelo que se enroscam em laços de afeto e de desencontros. Porém, somos mais fortes no clã.

Diamantina foi o destino escolhido pelo casal. Minas Gerais não tem erro: é bonito, bom e relativamente próximo para uma viagem de carro. O bebê não dava trabalho. Muito pacífico, dormiu o trajeto inteiro. Visitamos Serro, Diamantina, Milho Verde… 

O carrinho se mostrou um trambolhão quase sem utilidade. Papai e mamãe se esqueceram de que as ruas de pedras dessas cidades coloniais não conheciam carrinhos de nenéns, apenas carruagens com suas rodas avantajadas. 

Ainda bem que levaram um canguru no qual o papai aninhava o primogênito ao peito, com todo o orgulho que um pai apaixonado poderia fazer.

Foi em Serro que o neto ganhou o primeiro conjuntinho com prato e copinho da avó materna, guardado como recordação até hoje, 15 anos depois.

Entretanto, foi em Diamantina que experimentaram as mais interessantes experiências da viagem. Por onde passavam com o filhote, ouviam exclamações de júbilo pelo herdeiro. A cidadezinha parecia realmente congelada num tempo onde todos eram vizinhos de longa data. O acolhimento dos moradores era gostoso de sentir. 

De cinco em cinco minutos, a família de turistas ouvia: Benza, Deus! Benza, Deus! O neném era saudado e abençoado pelos transeuntes numa cantilena nunca ouvida antes por brasilienses céticos.

Logo entenderam que aquele ritual era necessário para não despejar sobre a criança qualquer pensamento de inveja ou mau olhado. O menino era de fato bem apessoado. Não havia uma senhora que não exclamasse:

- Como é bonito, benza Deus! 
- Que gracinha, benza Deus!

E, entre uma ruela e outra, um casarão colonial e outro, encontramos duas turistas perdidas naquele rincão que não atraia multidões como em Ouro Preto e Tiradentes. Diamantina fica no fim da linha, no meio do nada. Ainda não se transformou em atração, mas vale muito a pena visitar a terra de JK.

A dupla de turistas estava deslumbrada com a cidade, assim como os pais estavam abobados com o bebê-estrela na cidade. A mais nova tirava foto da mais velha, eram mãe e filha.

O pai perguntou a elas se queriam uma foto juntas e elas, prontamente, assentiram. Prometeu remeter o registro para a casa delas. Trocaram endereço e se despediram. Se fosse na era do celular, tudo talvez não houvesse acontecido dessa maneira. Mas era um tempo antigo como Diamantina demanda.

Foi assim que Ana Catarina Matos e Luciana se tornaram amigas no Facebook. Nunca mais se viram ao vivo, mas permanecem conectadas por um estranho e encantado fio de carinho. A mãe dela já se foi, a minha também. Aquele encontro fortuito nas ruas de Diamantina foi o primeiro e único de nossas vidas, no doce papel de filhas.

Ana Catarina soube do lançamento de “As desventuras de uma mulher que levou um susto e sobreviveu”. Carinhosamente, pediu um exemplar autografado, pagou. Mandou o endereço, que não era mais o antigo, em Petrópolis, mas no Méier, bairro no qual passei todas as férias de menina e de adolescente no Rio, em companhia da minha madrinha e da irmã de Dindinha, que morava numa simpática vilazinha de casas na divisa com Lins Vasconcelos. Outra conexão telúrica, que coisa! 

E ontem, ao chegar com o porta-malas cheio de compras de supermercado, resolvo abrir a caixinha dos correios, algo que jamais faço. Sempre me esqueço de checar as correspondências porque elas não existem mais. Agora apenas boletos, flyers, informes do banco. Tudo que nada me diz respeito, e ,sim, ao meu marido, que sempre reclama que eu sempre me esqueço de checar a caixa de correios.

Abro a portinhola e voam papéis amontoados. E do meio deles, um envelope escrito à mão para mim. Era da Ana Catarina! Seguindo a tradição das belas amizades mantidas por correspondência, a carioca me mandou a seguinte missiva: 


Me esqueci da chateação de fazer supermercado, do cansaço, da melancolia pano de fundo da rotina pisciana. Ana Catarina, nome bonito, mulher especial. Que gentileza que não se vê mais, que doçura é a sua opinião sobre a minha obra, minha filhinha rosa pink, pequenina e tão desejada. 

Gratidão por Diamantina haver me presenteado com um átomo puro de carbono que resiste à passagem dos anos brilhante e precioso.


Comentários

  1. Poxa que lindo ler tudo isso e ainda saber que existe pessoas sensíveis e que se interessam por gestos sutis. Bom começar o dia assim, dá uma certa esperança que o ser humano não está só preocupado com si. Sublime sua crônica, adorei.

    Renata Assumpção

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  2. Ô Deus, como essa minha amiga escreve bem!!! Realmente uma benção , motivo de muita alegria receber um bilhetinho manuscrito hoje em dia, dá saudade.

    Cynthia Chayb

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  3. Que linda história. Parabéns pela vida e parabéns pela escrita luminosa.

    Ângela Maria Sollberger

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  4. Bom demais, Luciana! Reacende a crença que ainda existe solidariedade e amigos dispostos a partilhar de momentos marcantes da vida. Você narrou, emocionou e terminou com belas palavras!

    Socorro Melo

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  5. Que carinho, Lu. Coisa bonita de se ver nesses dias tão áridos de hj...

    Fátima Venceslau

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  6. Que registro gostoso! Deu vontade de ir pra Diamantina.
    Beijos e boa semana, Lu!
    Fabíola Rech

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  7. Que linda história! Tão delicada! Parabéns!

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  8. Que doçura! Meiguice atrai meiguice!

    Érika

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  9. Luciana, que coisa mais linda esse texto. O último parágrafo tive vontade de deixar colado na parede da minha sala.

    Karla Liparizzi

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  10. Que lindo, Luciana! Parabéns! Muito delicado!
    Obrigada por compartilhar seus textos, são muito bonitos e eu quero adquirir seu livro.

    Zila Siquet

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