Poesia da rua



"As coisas simples, mudas, são subitamente cobertas por uma tênue radiação primordial. Iluminadas de dentro de sua alma, e iluminadas de volta. A alegria do ser e sua simplicidade descem e cobrem tudo com o mistério das coisas que existiam antes da criação do conhecimento". 
(Amós Oz)


Gestos impensados de afeto sãos os mais poéticos. Atitudes gentis que colhemos ao caminhar poucos metros pela calçada sem perder o olhar para o outro. 

Como o pai que ajeita a manta sobre o bebê que carrega nos braços. A mãe, ao lado, puxa o filho mais velho para si, com o claro intuito de lhe certificar de que também é parte do clã e deve ser protegido.

O amigo mais velho que acolhe as mãos dos mais novo numa concha em volta da concha e despeja uma porção de balinhas, a garantir que nenhuma se espalhe pelo chão.

As adolescentes que unem os rostos para registrar mais uma selfie de Best Friends Forever. 

Os cachorros sem dono, agasalhados com casacos de feltro azul, solidariedade anônima contra a aridez do inverno.

O indefectível souvenir da capital comprado pelo turista embevecido.

Quando um homem desconhecido cede passagem a uma mulher feia.

E quando os motoristas param ao sinal do pedestre para cruzar a faixa. 

Aquele que pega o lixo que não jogou no chão e procura uma lixeira.

A moça que recolhe as fezes do cão enquanto segura a saia afoita com a lufada de vento. 

O alívio do menino que consegue vender um pano de prato ao cliente que saboreia seu farto prato. "Ele estremece, tira as mãos dos bolsos e abraça os ombros. É o abraço daqueles que não têm ninguém".

A poética da rua é cênica e cínica, jamais inexistente.



Comentários

  1. Maravilha de texto, Lu! Grata por nos trazer essa reflexão simples tão rotineira, mas que nem sempre são observadas e percebidas com o olhar devido.

    Cynthia Chayb

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  2. Muito lindo . Tb adoro achar esse afeto que existe no mundo.

    Karla Liparizzi

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  3. Que lindo, Lu. Adorei.
    Beijos,

    Ana Cecília

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  4. Boa noite, Luciana. Li sua crônica e fiquei pensando nos 99,9% que não desviam o olhar porque eles olham e não enxergam, é impressionante! Olhar sem enxergar é a nossa tragédia.

    Paula Mello

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  5. Bom lembrar que ainda existe poesia. Obrigado!

    Wainer Martins

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  6. Uma lufada de ternura em dias tão cruéis.

    Ângela Maria Sollberger

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