Para não esquecer*



Clarice na visão de Giorgio de Chirico


“Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo.
 Eu só trabalho com achados e perdidos”.
(C.L.)

“Do Leme ao Pontal, não há nada igual”, eternizou o fluminense Tim Maia. Agora o pontal do bairro do Leme ainda tem mais motivos para ser único no mundo: o bairro acaba de ganhar (no último dia 15 de maio) uma estátua em homenagem à escritora Clarice Lispector, ilustre e enigmática moradora das redondezas por doze anos. A peça, em tamanho natural, vem acompanhada de Ulisses, o amado cãozinho sentado aos pés da dona. Merecida celebração à mulher que intriga e encanta gerações de brasileiros e estrangeiros com sua escrita inigualável, há décadas. 

Clarice Lispector não é brasileira de nascimento, mas de amor (naturalizou-se verde e amarela aos 23 anos). Veio ao mundo na longínqua Ucrânia no dia dez de dezembro de 1920 e chegou ao Brasil uma bebezinha de dois anos, junto com os pais e as duas irmãs mais velhas. A família de origem judaica fugia das situações de conflito na terra-natal. 

A infância passa em Recife, onde a mãe falece quando ela completa dez anos. Sobre o tema, escreveu uma das crônicas mais lindas de sua magnífica biografia: Restos de Carnaval. Aos 15, a família se muda para o Rio de Janeiro. 

A vida foi precoce para Clarice. Ela começa a escrever aos nove anos. Aos 11, envia contos para o Diário de Pernambuco, sistematicamente recusados por tratarem de “sensações” e não de fatos. 

E assim é a literatura dela: sempre calcada nos sentimentos, no turbilhão de emoções das personagens e não na descrição de lugares ou acontecimentos. Talvez por isso os romances e contos de Clarice são considerados herméticos e complexos pela maioria de leitores que, apesar disso, não se intimida de citar Clarice como autora de muitos textos que não lhe pertencem. A autora é uma das mais divulgadas nas redes sociais, infelizmente de forma equivocada na maior parte das vezes. 

Tudo porque Clarice se tornou um mito. Sua beleza exótica, esfíngica - retratada a óleo pelo mestre grego Giorgio de Chirico em Roma, no ano de 1945 - agregada a uma verve vulcânica e melancólica permanecem fontes inesgotáveis de admiração e espanto. 

Estreia triunfal - De sotaque estranho e postura aparentemente fria, Clarice desponta para o panteão da literatura nacional aos 22 anos, com o primeiro e arrebatador livro: Perto do Coração Selvagem, que recebe o Prêmio Graça Aranha de melhor romance de 1943. Nesse mesmo ano, se forma em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, lugar no qual conhece seu futuro marido, Maury Gurgel Valente. 

Devido ao casamento com o diplomata Gurgel Valente, vive na Itália, Suíça e Estados Unidos. Em 1948, nasce seu primeiro filho, Pedro (que morreria jovem por causa da esquizofrenia). Em 1953, o segundo: Paulo. Foi ele quem pediu à mãe para elaborar uma história infantil. E assim brota o fantástico O mistério do coelho pensante, merecedor do prêmio de melhor livro de 1967 pela Campanha Nacional da Criança. 

Em 1959, Clarice se separa do marido e volta para o Rio de Janeiro. Escreve crônicas, contos e colunas para vários jornais e revistas brasileiros. Pena fazendo da pena sua fonte de renda para sustentar os dois filhos, pois ainda que seja prestigiada com muitas premiações, continua a receber muitos nãos e a vender pouco. 

Fumante compulsiva, provoca um incêndio na própria cama ao adormecer com o cigarro aceso numa madrugada de 1966. O acidente causa queimaduras graves na bela escritora, inclusive na mão direita. As sequelas físicas provocam sequelas emocionais. Clarice se tornou mais depressiva e mais reclusa, porém nunca deixou de escrever, trabalhando também como tradutora de Edgar Allan Poe, Agatha Christie dentre outros. 

E descobri que não tenho um dia a dia. É uma vida a vida. 

E que a vida é sobrenatural”. (C.L.) 

A misteriosa autora de clássicos como A paixão segundo G.H., A Maçã no Escuro, Laços de Família e A Hora da Estrela (adaptado para o cinema pela diretora Suzana Amaral, vencendo dois ursos de prata no Festival de Berlim de 1986) é tão fascinante que conquistou o coração do célebre historiador americano Benjamin Moser. Por cinco anos, o biógrafo investigou a trajetória de Clarice e publicou, em 2009, biografia completa da escritora: “Clarice, uma biografia”. 

“A vida dela é incrível. Há escritores que apenas ficam em casa e não fazem outra coisa senão escrever. Com Clarice é muito diferente. Sua vida é, como ela própria, simplesmente maravilhosa”, afirma Moser. 

Considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século 20, Clarice Lispector viveu intensamente e morreu inesperadamente, ao descobrir um câncer de ovário em estágio avançado. Duzentas pessoas compareceram ao enterro simples da escritora no Cemitério Comunal Israelita do Caju/RJ. Seu corpo foi purificado por quatro mulheres da Irmandade Sagrada "Hevra Kadisha", de acordo com o ritual judaico. Participaram do funeral os colegas e amigos Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José Rubem Fonseca. 

Vaidosa, nunca quis revelar a idade em entrevistas e muito menos em sua lápide. O filho Paulo, em respeito aos caprichos da mãe, obedeceu. Mas se as datas procedem, Clarice virou uma estrela resplandecente no céu (para os admiradores sempre foi) um dia antes de celebrar 57 anos, em nove de dezembro de 1977. 

Lu Assunção 

Jornalista e fã de Clarice desde que leu “A vida íntima de Laura” aos oito anos de idade. 

*Título de um dos livros de crônicas de C.L.



Instituto Moreira Sales - 



Comentários

  1. Obrigado Luciana Assunção por este presente!!
    O que acho mais interessante em Clarice é que ela é assim: ou toca ou não toca! Digo isto porque para muitas pessoas ela é uma louca, ou seja, as pessoas acham a escrita dela confusa etc. Por outro lado, existem aquelas pessoas nas quais "o gostar de Clarice" é imediato! Quem sente essa identificação imediata sabe o quanto a escrita de Clarice é profunda e rompe com todas as normas da escrita, inclusive ela detestava ser chamada de escritora.
    Beijos Lu e parabéns pelo texto!

    Rogelma

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