Cinco vezes mais rica





A chateação de uma ida ao cartório teria de ser recompensada de algum modo. O sebo estava ali do lado, recordou. O que são uns minutinhos a mais numa segunda fria? Entrou e bateu os olhos em um livro infanto-juvenil de capa azul: Ei! Tem alguém aí?. Pareceu-lhe promissor. 

Seguiu a ziguezaguear pelas estantes atulhadas. Há alguma ordem por gêneros literários no Pindorama, mas a verdade é que há livros demais no mundo. E na hora que você quer lembrar de um título ou autor, quem disse? 

Mas é legal não ter ideia pré-concebida também. Se saltar na sua frente é porque tem de ser seu (essas coisas que só quem crê em conexões telúricas diria). Respeitando a premissa, quase agarrou “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, da Clarice. Deu vontade, mas reconsiderou. O que lhe falta ler é “Laços de Família”. E ele não estava se exibindo no momento. 

Daí viu “A Asa Esquerda do Anjo”, da Lya Luft. Sempre curtiu esse título bem bolado. Não resistiu e abraçou o exemplar junto ao peito. Começava a perder o foco principal: encontrar livros para os filhos lerem na longa jornada fora do país. Os disponíveis na biblioteca de casa já haviam sido devorados pelo mais velho. 

Foi até a mísera parte dedicada aos jovens, relegada à estante rés do chão, no canto mais escuro da loja que, velha e nunca reformada, não tem nenhum projeto de iluminação. Para uma míope é excruciante desvendar títulos entre centenas de lombadas gastas pelas traças do tempo. 

De cócoras, foi espalhando os achados... “O Feijão e o Sonho”, “Éramos Seis”, da amada série “Vagalume”, dormiam entre obras sem nenhuma expressão. Não, não queria livros tristes ou melancólicos. A vida em outro país já cobra sua parcela de dor e solidão. Importante era encontrar literatura de fantasia; de doçura e poesia. Que o exílio temporário fosse acalentado por sonhos coloridos e heróis inesquecíveis. 

“As aventuras de Tom Sawyer”, sim, esse vai! “As Batalhas do Castelo”, nunca tinha ouvido falar da história, mas apresentava selo na capa de ganhador de “O melhor livro juvenil de 1987” pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. O tema, apreciado pelos dois filhos, além da chancela de uma galera respeitada, selou o resgate da obra da areia movediça do esquecimento. 

Porém, de repente, um exemplar bem velhinho, encapado para escola, se destacou: “O Menino do Dedo Verde”. Ora, ora, que emoção genuína tomou o coração da mãe. Um livro marcante da infância que lhe recorda a própria mãe, batizada pela filha caçula de “menina do dedo verde”, por ser uma multiplicadora de plantas nos jardins. 

Quanto é esse aqui, perguntou a caçadora de relíquias ao entediado atendente. Cinco reais. Tadinho! Gritou a mulher num misto de horror e sofrimento. A experiência de ler o “O Menino do Dedo Verde” vale cinco reais num sebo da W3 Sul. O vendedor nada entendeu daquele espanto e permaneceu encarando a compradora, aguardando a finalização de sua primeira venda do dia. 

Por um átimo, a mulher se perguntou o que um torpe fazia naquele templo de sabedorias. Todavia, não se abateu. Pagou e pegou as pepitas garimpadas, tomando o trajeto da rotina cinco livros mais rica.



Comentários

  1. MARAVILHOSO!!!!! Com certeza será um alento na aventura que se aproxima!!! Adoro seus textos !
    Gabriella Santana

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  2. Seu garimpo rendeu.

    Nunca li "O menino do dedo verde". Se ele sobreviver à viagem, pedirei emprestado aos meninos.
    Esse Jostein Gaarder é o mesmo do "Mundo de Sofia"?

    Lamartine Seco

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  3. Luciana,

    não sei porque... mas tenho quase certeza, de que você poderia poderia ter escrito o seu texto na primeira pessoa do singular...

    Beijo,

    Paulo.

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  4. Claro que não ficou ruim na terceira pessoa. Eu estou brincando com você!É que a gente percebe que o personagem central da sua história é você mesma!
    Fique tranquila, o seu texto ficou ótimo.
    Eu li "O menino do dedo verde". Mas faz tanto tempo, que me lembro muito vagamente da história.

    Beijo,

    Paulo

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  5. que fofo, adorei a história!
    Fabs

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  6. Lu, fui elogiar seu blog para minha colega que divide a sala comigo, daí compartilhei... Mais uma leitora para ele...

    Bjs,

    Ana Claudia

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  7. Adorei o blog, Ana. O texto maravilhoso me fez recordar um tempo super bom de blogagens, onde lia-se coisas bem legais nos diários virtuais e fazia-se amigos nos comentários de cada postagem.
    Parabéns para você!

    Paula Bellaguarda

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  8. Ah que delícia de texto...parabéns!!!
    Namastê!
    Cynthia

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  9. Ah que delícia de texto...parabéns!!!
    Namastê!
    Cynthia

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  10. Adorei Lú, viajei no tempo que delicia, eles vão amar. bjcas

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