Memorabilia







O objetivo era encontrar uma capa para o violão do caçula. A W3 Sul - que na minha infância reluzia com seus letreiros chamativos, abrigando as lojas mais importantes da cidade, hoje parece o centro deteriorado de uma capital centenária. #Sóquenão. Como apodreceu tão rápido? Em menos de 50 anos já entrou em decadência. 

Na infância, cruzava diuturnamente a W3 Sul com mamãe no fusquinha azul diamante. Os nomes das lojas foram essenciais em meu processo de alfabetização, impelindo-me a aprender a ler com rapidez para acompanhar a velocidade do carro. 

Nasci e cresci vivendo ao lado da W3 Sul. Ela faz parte da minha história por ene motivos que dariam outros tantos textos. Há alguns anos, voltei a ser vizinha da avenida e sempre dou um jeito de prestigiar o que resta de atividade comercial nela. Mescla de saudosismo e comodidade, pois posso deixar o carro e seguir a pé, um alívio para quem detesta dirigir. 

Então fomos, o caçula e eu, pela W3 afora. Na 505 Sul, encontramos uma loja bacana de música. Adoro lojas musicais. Todos aqueles instrumentos lindos (poucos objetos são tão plásticos e evocativos quanto os instrumentos musicais, não?) dispostos nas paredes, pelo chão... Um estudo para violão preenchia o ambiente com som de altíssima qualidade melódica. 

Fiquei ali me maravilhando, alimentando a alma de luz, tons e cordas. O caçula também futucava daqui e dali e conversava porque... Como conversa! Da minha parte, tentava abstrair admirando com inveja aquele universo lúdico, todavia matemático, do qual nunca consegui ter acesso a não ser como humilde apreciadora. 

Depois de uma pausa mágica no tempo, hora de sair. Voltamos para a calçada maltratada da avenida. Uma moradora de rua varria um cantinho para chamar de seu como se seu realmente fosse. Logo em seguida, vi um sebo. Não resisti, é claro. O caçula começou a reclamar, queria voltar logo para casa e suas brincadeiras, mas não demorou muito para ser fisgado pelo poder misterioso das bibliotecas. Porque sebos têm desorganização, ácaros e cheiros de biblioteca, não de livraria. E foi o próprio caçula quem atentou para o fato: ‘nossa, mamãe, olha como esse livro aqui é velho! Essa biblioteca tem muito livro doido”! 

Sim, os sebos são intimistas, escuros e empoeirados como bibliotecas de casa de avó (se você for aquele sortudo que teve uma vovó culta que gostava de livros). Procurei, procurei, procurei sem estar pensando em nada especial. Apenas deixei o olhar vagar pelas prateleiras a fim de encontrar tesouros. Saí de lá com dois livros de poesia: Maiakóvski e Elisabeth Bishop. Mais dois livros infantojuvenis para os guris: “A História do Mago Merlin” e “O Castelo do Príncipe Sapo", do mesmo autor de o “Mundo de Sofia”. 

Para desespero do pequeno, ainda entrei na loja de artigos católicos da qual sou habituê. Me encantam seus santinhos e anjinhos da guarda. Curto muito as camisetas com imagens de madonas renascentistas e outros mártires do Cristianismo. Sou capaz de ficar perdida ali dentro, aspirando a atmosfera pacífica, fecunda. Coisa de menina criada dentro da igreja pela madrinha beata. As naves me acolhem, sinto-me segura e reenergizada dentro delas. Mesmo sem abraçar religiões, os lugares sacros me dão alento e cura. 

W3 Sul, desprezada pela voracidade do novo. Memorabilia sentimental. 





Comentários

  1. E falam tanto da revitalização da W3, será que nunca vai rolar? A Biblioteca Demonstrativa fechada... Também andei muito por ali, memorabilia total...

    Marisa Reis

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  2. Texto de ritmo lento e saudosista, uma caminhada pela w3. Adorei e me deu saudades...

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  3. Texto de ritmo lento e saudosista, uma caminhada pela w3. Adorei e me deu saudades...
    VitAc

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  4. Uma pena né, uma avenida central tão derrubada, tá mais que na hora de ser lembrada.
    Namastê
    Cynthia

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  5. Uma pena né, uma avenida central tão derrubada, tá mais que na hora de ser lembrada.
    Namastê
    Cynthia

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  6. Na década de 60, estudava na Caseb, depois Elefante Branco....andava pela W3 de cabo a rabo, e as lojas, logo no começo, a Itabras, mais embaixo, Galo Vermelho, Lojas Irará, Móveis Planalto, depois, M OPLAN, Bi Ba Bo, Tiro Certo, Cine cultura (matava aula ás vezes, pra ir á tarde).. seu texto me levou a um passeio pela minha adolescência, uma verdadeira viagem ao passado. obrigado pelo presente, belo texto. boa páscoa!!!

    Severino

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  7. Quantas lembranças neste texto! E, minha opinião, acho que a revitalização não vai rolar. Vai se deteriorar mais e mais, até atingir sei lá que estado. Infelizmente.
    E a loja católica ainda existe? Estava precisando comprar um crucifixo para minha sala de audiências estes dias...

    Bjs, Ana.

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