Causo de Quaresma






Fique calma, não olhe agora, não ponha o pé no chão, mas ele está embaixo da cama! 

Quaresma é tempo de recontar causos que minam das ruas translúcidas, habitat natural das assombrações centenárias das cidades mineiras. Era nossa primeira vez em Sabará. A noite caía quando avistamos, um pouco isolado na paisagem, o casarão. Solar dos Sepúlvedas era o nome do lugar que fora batizado a contento. Imponente morada caiada de contornos azuis. 

Tem certeza de que estamos na pousada certa? Senti um desconforto ancestral de estar adentrando um caminho para o qual não haveria retorno. Ao pé da escada que terminava na imensa porta colonial, uma figura longínqua nos espreitava, ladeada por dois enormes cães dos Baskervilles. 

Não vou descer do carro não, avisei. Todavia, meu marido não era de acreditar em Carontes. São apenas dois ruskys siberianos, falou, encerrando o assunto para correr ao porta-malas. Demorei a arredar o pé, hipnotizada pelos faiscantes olhos água-marinha que não transmitiam nenhuma paz de criança dormindo. 

Vou mostrar o quarto de vocês, informou o ser exíguo que a memória não divisa homem ou mulher. Não se preocupe, eles são muito mansos, emendou a voz fugidia, percebendo o pânico paralisante da jovem hóspede, que resistia em subir outro lance de degraus. 

Éramos os únicos hóspedes na pousada encontrada em tempos sem TripAdvisor. Aquela seria a primeira de outras estadias soturnas em Minas, onde tudo é o diabo no meio do redemoinho. Talvez a mais estranha de todas. 

A porta do aposento se abriu e revelou um quarto luminoso e agradável. Por um momento esqueci da aura espectral de todo o casarão. Fora um longo dia de viagem de carro, já era tarde e precisávamos descansar. Me joguei na cama testando a qualidade do colchão, enquanto meu marido saiu pelo corredor para tirar alguma dúvida com o anfitrião que, como um sopro gélido, já havia sumido corredor afora, seguido de perto por seus guardiões infernais. 

Quedei sozinha rodeada de paredes e móveis de uma época de rezas, bendições e maledicências. A solidão em casas cheias de espaços vazios sempre me apavorou. Tinha certeza de que estava sendo observada. Havia uma densidade extra naquele quarto de pensão. 

Fiquei de joelhos sobre a cama e olhei pela janela. A noite era espessa. Não havia vizinhos. Será que havia cidade? Era mesmo Sabará ou era o lado de lá? Cadê o marido que não retornava de sua incursão pelo casarão mal-assombrado... O silêncio abissal me colocava em contato direto com as batidas angustiantes do meu coração. 

Mas além do som surdo, havia também um som úmido. Um arfar morno e fétido. Mofo? Deitei de barriga para cima e prendi a respiração. Olhava para o teto e contava os segundos para me distrair dos delírios auditivos. 

Não, não podia ser real aquele compasso ritmado que tomava conta do espaço. A casa não era real também, o ser exíguo e os cães dos Baskervilles, tampouco. Onde é que se meteu todo mundo? Sonhava ou ainda estava acordada, não sei. Senti a alma se desgarrar do corpo, um formigamento nas extremidades, torpor. 

Quando já me despedia de mim, a porta do quarto se arreganhou. Em meio à bruma, reconheci o contorno do meu marido de pé, estático e estoico. 

- Fique calma, não olhe agora, não ponha o pé no chão, mas ele está embaixo da cama! 

O quê? Onde? Quando? Como? Ele? Quem? A versão mineira do cão dos Baskervilles jazia em pausada respiração aguardando apenas um deslize de sua presa para conduzi-la ao mundo dos mortos! 

Até hoje não sabemos como um cão tão grande entrou embaixo da cama sem ser notado. Na verdade, até hoje me pergunto se de fato tudo aconteceu como me lembro. Só posso garantir que não inventei esse causo por completo porque existem 23 avaliações sobre o Solar dos Sepúlvedas no TripAdvisor. Eu conferi. 


Comentários

  1. Tá vendo o que dá ver tanto filme de terror. Por isso que o maridão aqui nem assiste.

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  2. Que medoooo!

    Juliana Carvalho

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  3. Tenso esse seus momentos.

    Renata Assumpção

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  4. Uau fiquei tensa����

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  5. kkkkk, que tenso!! comigo aconteceu uma situação curiosa. Quando era adolescente passei alguns dias dormindo em um colchão no chão da sala daqui de casa com algum dos meus irmãos em outro colchão (nem lembro mais o porquê). No meio da noite eu ouvia nitidamente barulhos de passos, até que um dia, cansada de passar medo, decidi descobrir o que era. E o que era?? ... a respiração do meu irmão!! O mais curioso é que depois disso nunca mais ouvi o barulho. Por que será que sumiu? Acho que era alguém querendo "brincar" comigo. Bjs! ;)

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  6. Olá querida Luciana, quanto mais a leio, mais aprecio seu estilo, gostoso de ler. Valeu! abreijos, feliz quaresma pra vcs por aí.

    Guti.

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  7. Gostei desse estilo Guimarães!

    Marisa Reis

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  8. É por essas e outras que eu prefiro as praias do nordeste... Parabéns pelo post!

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  9. Fiquei com vontade de conhecer esse Solar!
    Beijos.

    Fabíola Reich

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  10. "Aquela seria a primeira de outras estadias soturnas em Minas, onde tudo é o diabo no meio do redemoinho. Talvez a mais estranha de todas."
    Minas, sim, mexe com a gente de todos os jeitos.

    Lilian Alvisi

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