Praxis






"Ficaria mais atraente se eu o tornasse mais atraente.
 Para escrever, porém, tenho que prescindir. 
A experiência vale a pena 
- mesmo que seja apenas para quem escreveu."
Clarice Lispector


“Na prática, a teoria é outra”. “Na prática, a teoria é outra”. “Na prática, a teoria é outra”. De tantas frases interessantes, essa foi a que grudou na cabeça ao dar cabo de “Fim”, de Fernanda Torres. A obra é bem a minha cara: melancólica, mordaz, mórbida, lírica, inconformada e patética, como a insônia que me assola há mais de década e já virou tema corrente de debates entre os caros amigos. 

Todo mundo se solidariza, se apieda. Não faltam as dicas de sempre. As boas intenções... Mas, como afirma Ciro, uma das personagens de Fernanda, “na prática, a teoria é outra, outra, outra...” 

“Se você se mudar pra cá, quem sabe dorme melhor...”, disse com meiguice Geysa, cuja casa é encravada nas reentrâncias do fim do mundo brasiliensis. Um lugar tão distante do conceito exato da Esplanada dos Ministérios, que juramos estar no estado natal de Drummond e Adélia Prado. 

Fiquei comovida. Cenários bucólicos sempre me fazem o coração saltar do peito. Enfatizam meu grande paradoxo “miltoniano”: “sou do mundo, sou Minas Gerais”. Uma parte profunda de mim é da roça, do mato verde. A outra: cinema, teatro, calçadão. Gosto de fazer tudo a pé, ter tudo à mão. Para mim, o carro é um mal necessário. Então, permanece a elusiva vontade, pois “na prática, a teoria é outra”. 

Mas se eu tivesse aquele pôr-de-sol na varanda que tem a casa da outra amiga que aportou no Altiplano Leste? Eu me poria a dormir como anjinho, derretendo entre os lençóis alaranjados até o mesmo sol me despertar? “Na prática, a teoria é outra”... 

Por duas semanas, um camarada de Pirassununga, hoje mais meu amigo do que já foi de meu marido, tem quebrado a cabeça para resolver meus distúrbios de sono. Que delicadeza da parte dele, devo registrar. Fez comigo diversas consultas virtuais, sempre na tentativa de encontrar uma saída, ou seria uma entrada para decifrar o enigma do desaparecimento de Morfeu? 

Entretanto, tudo o que consigo deduzi das noites em claro é que os amalucados são, por definição, insones. Que Clarice Lispector era insone e alardeou repetidas vezes - em textos nada repetitivos - a respeito da companheira fiel de inúmeras madrugadas. Acho chique ter essa conexão telúrica, essa parecência com ela. Porque é preciso fazer do limão uma limonada, não é verdade? Se bem que ando preferindo o suco de casca de lima que aprendi com o feirante simpático das quartas-feiras. 

Todavia, a insônia me dá muitas clarezas. #trocadilhosóquenão. Em meio aos zumbidos urbanos da calada da noite – e agora gostaria de estar entre os grilos e coaxares da nova casa de Carmem Cecília (lindo nome que mistura doçura e firmeza) – é bom escrever. Nem que seja pra mim mesma. 

Ver o sonho de uma pessoa querida se materializar, entrar nele a apalpar as quatro paredes sólidas é um privilégio. Deveria ter dormido realizada, serena de felicidade. E até aconteceu, por quatro horas. Depois, a previsível rotina.

Terminei o “Fim”, comecei o “Bem-Vindo” (presente do primo-irmão) e, num último gesto de vingança contra os sonhos perdidos, abri a gaveta, saquei meu caderno rosa e a caneta de brigadeiro (presente de Marisa, a amada imortal) e comecei a rabiscar palavras num surto psicográfico que logo mais me tomaria tempo para decifrar. 

Será que se teclasse a máquina aos moldes de Clarice atingiria o pulo do gato da literatura? “Na prática, a teoria é outra, outra, outra... 



Comentários

  1. Eu acho que a sua cabeçaa está cheia de pensamentos te impedindo de dormir. Na prática, a teoria é outra. Não é ao contrário?

    Evelyn

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    Respostas
    1. Sim, a frase é ao contrário, mas a Fernanda escreveu assim pra fundir a nossa cuca e eu gostei, dear Evelyn Lara Ferris! Não, a minha cabeça não está cheia de pensamentos. Eis o X da questão. Eu acordo, simplesmente acordo sem estar pensando em nada. É como se não precisasse dormir mais, mas é claro que preciso. Mistério...

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  2. Também gostei da ideia da Fernanda, fundiu a minha cabeça! Se não é pensamento, o que haverá de ser? Mistério mesmo! Enfim, adorei o texto!

    Evelyn

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  3. Lu, querida do coração!

    Sim, eu realmente fiquei emocionada quando ouvi todos os sons da noite na minha casa nova e vi aquele céu pleno de estrelas! Fiquei meio besta, tentando guardar o momento na memória, ao mesmo tempo em que falava com vocês que estavam lá na minha casa pela primeira vez e falava com o seminarista-filho pelo whats app, porque estava precisando de mim e tinha me chamado... Foi tudo junto e misturado ao mesmo tempo...

    Quando vocês saíram e fui fechar a casa, voltei ao quintal, agora só comigo mesma, fui bem na parte escura e fiquei em silêncio... agradeci a Deus pelas mudanças na minha vida e mais uma vez me coloquei à disposição para o que der e vier... e ouvi por mais uns instantes aquela algazarra toda, com aquele friozinho que vem da terra... e hoje, quando abri as janelas do meu ap e só ouvi barulho de carro, deu saudade.

    Eu nem sei se sou da roça ou da cidade... a ideia de uma casa para guardar meus discos, meus livros, meus amigos e nada mais me agrada, desde sempre... mas não era um sonho pelo qual eu trabalhava, porque não costumo fazer isso... os sonhos existem e um dia ou outro acontecem... a casa nova simplesmente aconteceu... a troca entre imóveis que deu certo... os trabalhos extras que estou recebendo para ajudar nas contas extras... tudo está se encaixando... e vou indo em frente, já pensando no dia em que vou comer pão quentinho com manteiga derretida vendo o entardecer ou o alvorecer...

    Você disse que meu nome mistura doçura e firmeza... gostei... deve ser por isso que sou assim, diferente...

    Bom, antes que comece a chorar nessa baia de trabalho, vou encerrar...

    Beijos, beijos, beijos!
    da
    Carmem Cecília

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  4. Querida Luciana,

    vi a menção que você fez a mim relativa à minha preocupação em relação ao seu sono. Obrigado.

    Mas, persisto no assunto. Como já te disse, vivi uma fase assim, e sei o que significa.

    Achei este artigo sério:
    http://rnp.fmrp.usp.br/aulas/18-Disturbios-do-Sono.pdf

    São pessoas da USP. E enfatizam a necessidade da preparação do ambiente - e do "insone" - para o sono.
    Dê uma olhada. O artigo tem uma parte meio chata, sobre as várias fases do sono (início).

    Mas tem também as sugestões para um "bom" sono, que pode ser interessante (pg. 7)

    Essa noite, comigo aconteceu algo que me perturbou por muito tempo: acordar muito antes do despertador.
    Porque? Ontem fui dormir mais cedo: 23:00 (só durmo 6 horas por noite).
    Acordei, fui ao banheiro, voltei pra cama e fiquei quietinho pra não acordar a Eliane.
    Acabei dormindo mais um pouquinho. Uns 15 minutos, e acordei antes do despertador (5:55).

    Como também já te falei, se fosse antes, eu ficaria estressado "tentando" dormir, e me levantaria da cama cansado.

    Vamos continuar "estudando" o seu caso, até acharmos uma solução!!

    Um beijo,
    Paulo.

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  5. LU, querida tenho um pouco da querida prima, dormo mais ou menos 03 horas por noite, mas estou satisfeita com o sr. morfeu, sempre foi assim, e ai vou lendo a vida .....como dizem por ai. Sempre acompanhou o seu blog. Beijos a toda família, a

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