Parábola verde e amarela





Os críticos severos da Copa dizem que ela não deixará nenhum legado. Prefiro ser um pouco mais otimista – e olha que esse exercício de Pollyanna é difícil para uma zangada como eu – e acreditar que deixa, sim. Esse legado já está bem diante dos nossos olhos. E se traduz nas flechas lançadas pelos primeiros habitantes dessa terra abençoada, porém descrente. 

Assistir aos índios retomando seu território, ainda que de forma simbólica, é ver o povo brasileiro tomando consciência de si mesmo. Demorou, estamos atrasados há pelo menos uns 100 anos, mas a fagulha de nação acertou em cheio o coração. Depois de 2013, depois da Copa, nunca mais seremos fragmentados como outrora. Assim espero. 

O legado da Copa é o pessimismo que assola a população, acompanhado da rebeldia jamais experimentada por um povo culturalmente procrastinador. Esse cair em si de nossa condição patética. De que ainda somos inúteis (a canção do Ultraje a Rigor nunca foi tão atual). Porque na década de 80 permanecia o sonho de país do futuro. Agora, o futuro já ficou pra trás. Estamos no presente com lama até o pescoço. 

Essa Copa mequetrefe nos jogou a realidade da incompetência da sociedade brasileira na cara de cada um, sem distinção de raça, cor, credo ou conta bancária. Até quem é cego pode ver! 

Talvez se não fosse todo esse vexame de tudo por fazer aos olhos do mundo, os brasileiros continuassem a acreditar na normalidade desse eterno tudo por fazer. Nessa ladainha de pedintes, nessa mendicância. Hoje, me parece que quem tem discurso de coitadinho está out. A crítica começa a vir acompanhada de uma ação. Caótica, é verdade, mas ação. É um primeiro passo. 

A Copa é o monstro que se deve abater em conjunto porque ela representa a corrupção, a falta de soberania (quem é a Fifa pra achar que pode tudo?), a ausência de foco nas prioridades. E daqui a pouco vêm as Olimpíadas e aí o caldo da inércia vai entornar de vez. Porque acredito que as Olimpíadas serão mais chocantes para nós do que está sendo descobrir que não entendemos nem mesmo de futebol. 

De repente, o brasileiro acordou para o que ele representa para quem manda no mundo: nada. Somos periféricos com arrogância de umbigo. A desorganização desta Copa escancara nossa total incapacidade de ser profissional. De ser eficiente. Os poderosos do hemisfério norte nos deram uma oportunidade de mostrar maturidade e tudo o que vão receber é o que o Brasil sempre foi: mambembe. 

E o pior é que a gente sempre achou bonito ser amador, né? Sempre apostando no “discurso da superação” de uns e outros e não numa coletividade unida e consciente de sua cidadania. Brasileiros... Sempre imersos na cantilena de que somos lindos, criativos, alegres. E que esse tipo de personalidade frívola e ignorante faria de nós uma nação decente. A Copa escancara que não. Que somos violentos, brutais, preconceituosos, racistas, medíocres. 

A Copa é nosso telhado de vidro. O pior do governo e da sociedade expostos na vitrine. Nosso analfabetismo funcional, nossa jequice, nossa rudeza, todos os podres sob os holofotes. Acho que, enfim, estamos aprendendo a lição de que pra ser gente grande é preciso segurar as rédeas de nosso destino, tomar decisões. Empurrar com a barriga, jogar a sujeira para debaixo do tapete, votar em quem rouba, mas faz nos trouxe ao estado de coisas surreal em que vivemos. 

O moral da história da Copa é o fim do torpor hipnótico que nos acompanha desde a fundação de nossas bases republicanas. É a aposentadoria do espírito macunaíma. Eis o incomensurável legado deste grande evento fuleco-fuleiro. Todavia, posso estar sendo mais esperançosa do que jamais fui. 



Comentários

  1. "Fuleco-fuleiro" ficou muito bem!!!
    Kkkk
    Ótimas reflexões!
    Eu particularmente gosto de futebol e de copa do mundo, embora seja pão e circo, mas sei distinguir as coisas.
    Acho que poderíamos ter feito uma copa bem mais preparada adequadamente.
    E óbvio, sem esquecer dos milhares de problemas internos que temos que resolver enquanto subdesenvolvidos.
    A copa não é o nosso problema. Nem o agravou. Nem deixamos de resolvê-lo por conta da copa.
    Todos os custos com a copa representaram 2% dos custos com educação. Ou seja, não resolveria não fazer a copa.
    A diferença é que se esses 2% não tivessem sido gastos com o pão e circo certamente seriam embolsados por alguns políticos diluídos nas distribuições dos recursos até os municípios....
    Separar o joio do trigo é importante na minha opinião...
    O lixo é muito grande! Rs...

    Bjs,

    Rodrigo.

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    1. Concordo, sobrinho!

      Também gosto de futebol e não acho que a Copa seja o problema em si. Mas ela nos foi útil pra fazer a gente acordar e se enxergar como realmente somos.

      Um beijo pra você!

      tia Lulupisces.

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    2. Com certeza!
      Tupiniquins cegos e burros!!!!
      Kkkkk!

      Rodrigo

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  2. Estou impressionado com a precisão de sua análise. É uma psicóloga social!
    Depois que muitos de nós chegarmos às mesmas constatações, espero que nos reinventemos.

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  3. Que certas denúncias não passem batidas. Uma grande esperança, Luciana. Parabéns pelo texto!

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  4. Parabéns pelo texto.
    bjão.Namastê!
    Cynthia

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  5. Excelente texto Luciana, realmente também penso que a copa do mundo é o nosso telhado de vidro. Parabéns!

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  6. É isso aí, Lu! Adorei. Vou salvar nos meus textos preferidos. Embora ache que você esteja sendo bem otimista, especialmente com relação aos índios que vimos ontem na TV: para mim, continuam sendo apenas, e mais uma vez, fantoches de grupos (se é que são mesmo índios...) que se agarraram com tudo no poder. Mas, de resto, apóio totalmente!

    Bjss,

    Ana Claudia

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    1. E eu não sei que os índios nem são mais índios, dear Ana Cláudia? Mas foi bem simbólica aquela retomada de território com flechas e tudo. Foi demais!!! KKK!!

      Imagina o que deve ter pensado um alemão ao ver aquilo... Eles, que são super naturalistas, preservacionistas... Devem ter vibrado tipo: o Brasil ainda é o paraíso!!! KKKK!!!

      E os americanos, se é que viram, devem ter pensado: cadê os macacos e as cobras? KKKKKK!!

      Beijão e obrigada pela leitura e pelos elogios,

      Lulupisces.

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  7. Parabéns Luciana, você é Mestra com as palavras! Tenho feito algumas reflexões sobre esse momento que passamos e também com pensamento a la Polyana penso a desordem é triste, mas precisamos desconstruir para construir novamente e não reconstruir o mesmo modelo.Bjo

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  8. Seu texto, Luciana, segura o leitor em linguagem simples e do cotidiano. Vamos nos identificando e, o melhor,entusiasma. O Brasil precisa de seus textos amiga. Vamos publicar mais e mais.

    Um grande abraço,

    Simone Melo

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  9. Bom demais, Luciana!

    Maria Heloísa

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  10. Que os anjos digam Amém e, pelo menos seja o começo... Que o povo brasileiro aprenda a ser cidadão.

    Fábio Lúcio

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  11. Excelente texto!

    Celso Jr.

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  12. Muito bom seu texto, Lu, como sempre! Tomara que você esteja certa quando diz que "Acho que, enfim, estamos aprendendo a lição de que pra ser gente grande é preciso segurar as rédeas de nosso destino, tomar decisões". E as Olimpíadas, será que ainda dá tempo de cancelar ou vamos ter que ouvir o mesmo mimimi no Facebook daqui a dois anos, rs?

    Fabíola Rech

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  13. Planejamento, organização, direção e controle.
    Coisa que o governo brasileiro nunca aprendeu.

    O complexo, chamado de “Campo Bahia” e localizado na Vila Santo André, em Santa Cruz Cabrália, na Bahia, foi erguido em cinco meses.

    Ao todo, são 400 metros quadrados de condomínio composto por 14 casas e 65 salas e piscinas em frente ao mar.

    Apesar de ser “inaugurado” pela seleção alemã, o complexo não é de autoria da Federação Alemã de futebol. O empresário Tobias Junge, que possui negócios no Brasil, iniciou o projeto, reuniu empresas que o ajudassem a financiá-lo e o ofereceu como base para a Alemanha na Copa, que aceitou a oferta.

    É de gente assim que o Brasil precisa.

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