Pirlimpimpim




Puxou o blecaute para cima e um céu olho de gato surgiu na janela. Parecia que o vidro ganhara lente Ray Ban amarela sem pedir licença. E por acaso a natureza precisa de autorização para ser o que é? Existe, logo surpreende! Cotidiana, banal e fundamental. 

A mãe, sonolenta de mais uma madrugada às claras, entrou no chuveiro e lavou os cabelos. Na lembrança, as páginas finais do romance que lhe fizera companhia no último mês: “As Memórias Perdidas de Jane Austen”. Pensou que, assim como a imortal escritora inglesa, também sonhava encontrar um Sr. Ashford, ainda que inventado. Menos para venerá-la do que para lhe desencantar a publicação do primeiro livro. 

Como é fim de ano, sonhar alto não custa. Vibrar nas ondas das intensas intenções. Imaginou-se sozinha e plena de frente para o mar. Sempre gostara de solidão ou aprendera na marra com as ausências da mãe, a falta de irmãos de brincadeiras infantis ou por ter a certeza de que ser só é o estado natural dos peixes que nadam contra a correnteza? A límpida noção de individualidade talvez tenha nascido com ela, mesmo passando a vida dividindo quartos, casa pequena e banheiros coletivos. Mistérios. 

A loba solitária vive nela. Essa mulher ama estar consigo mesma ainda mais agora, que não pode ter a inteira presença de si à disposição. Maternidade deveria ser profissão regulamentada com carteira assinada e, portanto, com direito a férias regulares. Deixando a água correr pelo corpo, quis voltar a ser criança cuidada pela madrinha, guiada pelos adultos. Ser filha de alguém é tão reconfortante... 

Mas os tempos contemporâneos urgem e ela precisa sair do banho, pegar a roupa pendurada atrás da porta, passar um batom para disfarçar as olheiras, sair pé ante pé para não acordar os filhos... Não sem antes repassar as instruções para a empregada doméstica, sua única aliada nessa feminina tarefa dos pormenores: os meninos precisam comer frutas no lanche, tomar o mel com copaíba, usar as roupas velhas que as novas vão pra mala de viagem etc, etc. 

A pausa está chegando, porém por que será que não lhe dá um sentimento de rejúbilo? Se ao menos todos os arranjos se resolvessem com um pirlimpimpim. Ou utilizando o recurso fácil das reticências... OK, chega. Seja breve, mulher! A quarta é curta e sua vida não dá uma crônica, quem dirá um livro.



Comentários

  1. A feminina tarefa dos pormenores. .. é mesmo assim Luzita. Bem observado, bem descrito. Beijo e obrigada por nomear a falta que vira e mexe ainda me perturba: ser filha de alguém é tão reconfortante. Cadê D. Lygia?

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  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  3. Ser mãe, mulher, profissional, empregada e patroa....vida corrida demais....também sinto falta de ter um tempinho meu comigo mesma...mas vai ficar pra mais tarde...e daí , talvez ,vou querer a correria de novo....fim de ano vem sempre com esse cansaço, né?

    Beijo,

    Marina Caldana.

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  4. Meninas,

    quando Mariana nasceu, papai foi categórico comigo já na maternidade. Disse à queima roupa: aproveita para dormir muito bem aqui, porque nunca mais dormirá tranquila... Não no sentindo de preocupação, que ele não era disso, mas da rotina pesada mesmo.

    Renata.

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  5. "Oh mãe me ensina , me explica , me diz o que é ser menina..." "quero colo,vou fugir de casa..." Um tempo para fazer nada...voltar a ser filha, tudo de bom!
    bj.Namastê!
    Cynthia

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