Gloriosa Xepa





Dezembro é de fato avassalador. Você faz um esforço danado para não se contaminar pelo atropelo da vida, mas quando se dá conta, foi tragada pelo tufão e começa a girar, girar, girar... As horas somem, os dias passam e já é madrugada, os eventos se acumulam e você quer aterrissar, não em OZ, mas na sua cama mesmo, no escurinho. 

Dezembro também abre a temporada de lágrimas desobedientes. O coração amolece como gelatina sem geladeira. Tudo começa a fazer um sentido profundo sei lá por quais cargas d’água! Por que fomos doutrinados pela mitologia cristã e penitente? Pode ser... As mais idiotas festinhas de fim de ano da escola, da TV, até do meu trabalho revolvem meus rios... 

E foi assim, nessa de manteiga derretida, que no sábado de manhãzinha me deparei com aquela mulher. Parava o carro e seguia para o Ceasa. Ao lado dela, na grama, estava seu filho. E ao lado dos dois, dois sacos enormes repletos dos refugos de legumes e frutas, legítima xepa. 

A que horas aquela mulher e seu filho deveriam ter chegado ali para colher aqueles frutos que ninguém mais queria? Frutos como eles: invisíveis, desprezados, ignorados... Frutos amassados, descoloridos, tortos, sujos, podres, pobres. 

Mamãe me ensinou a não desperdiçar. Sou até meio paranoica com isso, eternamente em dívida com as minhas dádivas. Não gosto de resto no prato. Aquela mulher sabe muito bem do que eu estou falando. O filho dela, talvez da idade do meu primogênito, também. 

Ela tentava colocar aquele saco de linhagem enorme sobre a cabeça, observada pelo filho. E eu me lembrei do antigo vizinho da minha infância, sr. Celano, que vinha do Jumbo, agora Pão de Açúcar, com seus sacos de papel marrom equilibrados no cocuruto. Era uma imagem bonita de se ver. 

Mamãe também gostava de ir ao Jumbo, seu programinha de dona de casa quase diário. Antigamente ninguém fazia compra de mês. Todo mundo contava tudo tim tim por tim tim. A fartura e o seu contrário nefasto, o desperdício, não eram corriqueiros. Lá em casa não tinha essas luxices de iogurte, de morangos, de sorvete Kibon... 

Retorno para a mulher e seu esforço vão... Ela grita por ajuda: moço! Moço! Rapaz! E antes do meu marido, outro cara ouve seus comandos: por favor, você me ajuda a colocar esse saco aqui na minha cabeça? Em dois segundos ele estava lá, o saco gigante, bem equilibrado na moleira daquela mulher-força, mulher-potência, mulher-orgulho, mulher-exemplo, matriarca. 

Minha família é muito feminina. Mais irmãs do que irmãos, pai morto, mãe era vivinha da silva, poderosa. As mulheres fortes são deslumbrantes, sempre me apaixonei por elas e estava agora fascinada por aquela mulher-luz.

O filho dela também estava impressionado por sua mãe ser tão altiva. Senti alegria. A esperança de que ele irá se tornar um homem que admira as mulheres. Que as respeita e aprende lições com elas. Previ seu futuro como homem de bem. Pai de filhos do bem. 

Quis entrar naquele quadro a óleo tão expressivo, fazer parte daquela cena de esmigalhar meu coração. Nossa, a senhora é forte! Foi o que consegui verbalizar do fundo da garganta, a voz embargada pelo pipocar da comoção. Ela sorriu um riso branco, já partindo, mas não sem responder: tem de ser, tem de ser... 




Comentários

  1. Tem de escrever, tem de escrever... Nenhuma dádiva vem sem seu naco de maldição. Revolve as dores que já não são só tuas.

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  2. que beleza ler essa poesia no meio do caminho. beijos, Débora

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  3. COMPAIXÃO! Sentimento forte que palpita em nossos corações principalmente nos dezembros...bj.
    Namastê!
    Cynthia

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  4. Lindo, profundo e forte como você, Lulu!!!

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  5. Que lindo Lú! Uma bela reflexão para dezembro, para todos os nossos dias... Tbm não gosto de desperdício, admiro mulheres fortes... Uma linda lição para o filho e para todos nós!

    Bjs,

    Renata.

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  6. lindo texto Lu, parabéns.

    Bjs,

    Hylda.

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  7. Exemplo de Mulher e Mãe...
    Muito bonito seu texto, Lu! Verdadeira Mulher Guerreira...

    Leila.

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  8. lindo texto, Lu, amei :))))))))

    Fabiana.

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