O bonde da história



Uma reportagem sobre Tolstoi na TV a levou de volta à estante onde repousava o exemplar de “Guerra e Paz”, esquecido há mais de dez anos. Ao lado dos dois grossos volumes da obra-prima do escritor russo, “Ana Karenina” também dormia o sono dos épicos romances. Contudo, com um diferencial: já havia sido relido. Quem dera o tempo contasse biologicamente dobrado para a gente se deliciar em dobro com todos os livros amados.

Na ponta dos pés e ávida, ela puxou para si a obra monumental e começou a folheá-la. Buscou um sinal real de que havia lido aquele calhamaço inteiro, pois a proeza lhe parecia, agora, fruto de alguma imaginação delirante. Procurou pelas passagens sublinhadas em vão. Talvez, à época em que se debruçou sobre a densa narrativa, ainda fosse tímida para deixar marcada para sempre a alma nas linhas dos livros. Que pena! Não estava disposta a reler aquelas mil páginas. Os invernos no Brasil não são tão rigorosos e os filhos lhe roubaram a paz, deixando-lhe um dia a dia em pé de guerra com a falta de tempo.

Mas “Guerra e Paz” lhe revelaria outro presente: um postal esquecido pela memória fugiu do meio das páginas amareladas e caiu aos pés dela. Anônimo e paradoxalmente íntimo, a correspondência sem assinatura lhe trazia notícias de além-mar. A letra agradável mandava lembranças de Lisboa! Lisboa que, naquele distante 11 de abril de 2000, não estava em nenhum de seus mais lindos planos de viagem.

Um típico bonde lisboeta emoldurava palavras doces que enalteciam meus textos infantis sobre as travessuras vividas na fazenda:

Fui com você a cada aventura pelas terras da Salta Pau, principalmente para cima do teto a espreitar o mundo e tentar encontrar respostas nas mangueiras que rodeavam minha casa, assim como você fazia...

Quem lera essas historinhas e me dava conta dos mesmas naqueles idos pré-blog? Quem seria a misteriosa pessoa querida que se lembrara dela ao deambular pelas ruas da capital portuguesa, cidade que só viria a conhecer uma década depois, e pela qual também cairia flechada pelo amor?

Abraçou o cartão-postal contra o peito como se estivesse sendo filmada. Suspirou, grata. O close no rosto flagrou sentimentos de beatitude. Há treze anos, apenas duas amigas poderiam ter praticado tal gentileza direto da terra dos descobridores: Marisa ou Lumi. Não era Marisa porque a letra de Marisa é tão única quanto ela. Então fora Lumi, a desaparecida Lumi, que um dia representara para ela uma conquista do tamanho da descoberta do Brasil.

Bem a cara dela não assinar. Não deixar provas de sua existência ou de seu afeto. Lumi, o espectro oriental... Kabuki, máscara. Contente, a leitora devolveu os volumes de "Guerra e Paz" para a estante e o postal também, estrategicamente posicionado em primeiro plano. Um frame exibido, radiante de sua importante participação naquela cena de final feliz.



Comentários

  1. Loo,

    Não poderia mesmo ser eu, que nunca tive uma casa rodeada por mangueiras, e você sabe que mal sei reconhecer uma jaca... Paz e amor pra você, amiga, só pra jogar com as palavras e na onda do John.

    Marisa.

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  2. Adorei!!!!
    Saudades de você!

    Beijos,
    Ceci

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  3. Senti uma sensação muito boa ao ler o seu texto...nostalgia!
    bj.Namastê!

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