Miudezas




De viés, pela persiana, persigo as sombras que passam. Diviso suas roupas e pensamentos enquanto me enlevo ao som da Sereníssima de Vivaldi. O espírito sobrevoa o corpo, arrisco constatar. Não crio expectativa a respeito das avalanches que virão.

Previu amiga que o ano que vem será regido por Júpiter e tudo, portanto, tenderá ao exagero, grandioso como o planetão. Aqui, só penso em conferir o planetário em funcionamento novamente, após 16 anos de buraco negro.

Ontem, meu filho desalinhou meus cabelos como se regesse uma sinfonia. Gosto muito desses gestos mínimos de doçura dos homens, sempre tão espartanos nas demonstrações de apreço. Geralmente sou eu quem busco o toque deles, mas a vida tem dessas preciosidades. Urge, portanto, não deixá-las ir embora sem um registro.

Nessa sexta, estou interessada nos detalhes. A mancha de batom ferrugem no copo plástico branco. O rabisco de nuvem do desenho de Rômulo. O peixe de origami nadando no vazio. O burburinho de conversas indistintas da sala ao lado. A fração de segundo quando o aperto na garganta se alia aos olhos cheios d’água...

Quero captar a gargalhada da colega que acaba de descobrir que hoje é sexta, não quinta-feira. O amor silencioso entre as irmãs que vararam a rodovia cinzenta. O folhear de poemas a esmo no livro estalando de novo. O esmero em enviar cartão de Natal para todos os que partilham a minha vida ao vivo, pelo blog ou pelo Facebook.

Tantas as categorias de amizades hoje. As relações se adensaram ao invés de ficarem mais simples. Companheiros de sempre ou intermitentes; amigos de nunca aos domingos ou de toda vez que você precisa; os que adoram um talvez ou os que nunca dizem não; ainda aqueles que virtualmente lhe completam ou fisicamente lhe abraçam...

Quero a cor laranja que fica tão bonita no tom de pele de Tomás. A geladeira vermelha repleta de ímãs. As notas musicais na pauta: enigma cerebral. Almejo o silêncio da noite chuvosa, mas também o barulhinho do vento. Pintar as unhas com esmaltes de nomes engraçados (eu poderia ser contratada para pensar esses nomes. Garanto que seria um sucesso!).

E se eu fosse pensar em todas as profissões estranhas que eu gostaria de experimentar, daria uma piada divertida. Se eu tivesse sido contratada para ser frentista daquele posto em São Paulo? Ou na fábrica de sorvete no bairro de Belenzinho? E se tivesse me tornado uma atendente de locadora de filmes, como sempre sonhei? Onde é que eu estaria agora?

Hoje estou distraída pelas miudezas. Se fosse Manoel de Barros, faria um poema sobre canetas sem tampa, presentes por abrir, folhas que balançam e formigas dentro do açucareiro. Se fosse Rubem Fonseca, escreveria um conto sobre a mulher que estacionou na vaga para deficientes e acabou atropelada por uma cadeira de rodas. Se fosse Drummond, diria que ser servidor público inexpressivo é o caminho do sucesso na literatura. Se fosse Clarice, vixe, teria coragem de matar uma barata!

Todavia, eu só penso em ser comissária de bordo morrendo de medo de avião ou me embrenhar num estudo antropológico acerca do ritual gastronômico da pamonha nas fazendas de Goiás. Mas eu nem tenho os cabelos em coque como Cora Coralina pra saber se devo.

Comentários

  1. que bonito! gostei muito!
    que bom que vc não tem o cabelo da Cora, não combinaria com sua personalidade :)

    beijo,

    Giovana.

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  2. Numa pausa do meu curso de Ayurveda, venho almoçar em casa e os meus dedos buscam lulupiesces...que sempre me encanta...beijo grande em seu coração!
    Namastê!
    Cynthia

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  3. Muito bom Luciana! E que venha Jupiter pra continuar te inspirando a nos encantar!

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  4. Me senti abraçada com esse texto! Obrigada por compartilhar seu talento de engrandecer as miudezas!

    Beijo grande,

    Marina Marinho

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