Uma vida de cisne

Poucas vezes no teatro ou no cinema o ator tem a oportunidade de fazer a interpretação "de uma vida". Os papéis nem sempre deixam. Ou ainda há os que não perceberem que aquela personagem é um presente divino, que lhe cai no colo em forma de roteiro.

Mas não foi o que fez Natalie Portman em Cisne Negro. Ela agarrou - literalmente - sua oportunidade e brilhou. Mereceu ganhar o Oscar porque sua Nina já está entre as personagens mais arrebatadoras do cinema. O filme, em si, não tem nada de novo em matéria de tema, edição, montagem, roteiro... Mas a Nina, o que é aquilo, hein? Eu fiquei transtornada com a perfomance da pequena Natalie.

Quem ama balé como eu e já dançou nos bailes da vida, sabe que tudo aquilo é 100% verdade. A neurose, a competição, a adrenalina, a exaustão, a ansiedade, as canalhices, a inveja, a anorexia e a bulimia. Fiz dança por oito anos. Nunca fui a primeira bailarina, estava sempre no segundo escalão, mas podia sentir no ar a briga silenciosa e mortal das "queridinhas" da coreógrafa. A presença onipresente de mães recalcadas que insistiam em fazer das filhas o mais precioso troféu.

Então nadei de braçada ao acompanhar Nina em sua descida ao inferno para dançar o mais cobiçado papel de todos os balés: os opostos branco e negro, a rainha Cisne do Lago dos Cisnes. Meu balé preferido, é claro. Maravilhoso, denso, fabuloso. Tenho uma gravação em casa e revejo de tempos em tempos. Também tive o privilégio de assistir à interpretação do grupo Kirov ao maior dos clássicos do ballet, mas sem música ao vivo, o que é uma pena. Balé de verdade merece uma orquestra de verdade.

O universo da dança é feroz e perfeito. Estar na coxia e esperar a sua entrada é viciante. Eu talvez pirasse como Nina se houvesse sido a escolhida. Se bem que ela precisou matar sua própria essência e "se perder de si mesma" para sentir. Ou seja: brilhar não é pra qualquer um. Sentir tampouco. O filme vale por isso: para refletir até que ponto somos capazes de incorporar nossos desejos e sentimentos mais inquietantes.

E a participação mínima de Winona Ryder também é um presente. Ela, outra que se perdeu de si mesma e acabou na banheira de Hollywood. Não podia deixar de mencionar o retorno em grande e envelhecido estilo de Bárbara Hershey. Sua interpretação magistral da mãe frustrada e insana também assusta.

Terminou a projeção e eu ainda estava com a respiração suspensa. O calor convulsivo do choro começou a subir do estômago para a garganta. Não dei vazão ao drama. Mas, poucas vezes uma personagem me tocou tanto. No passado recente, apenas duas mulheres me mostraram a encarnação da musa em estado puro: Marion Cottilard com sua Edith Piaf e Fernanda Montenegro com sua Simone de Beuvoir. Duas atrizes elevando à categoria do sublime a vida de dois ícones franceses.

E nesse ponto, um ponto a mais para Natalie. Sua Nina é apenas uma bailarina de carne e osso, comum, ordinária. Dessas centenas que suam, sofrem, se torturam e morrem por uma vida de cisne.


Comentários

  1. E a transformação final no cisne negro? Arrepiante,hã?

    Sabia que cê ia gostar.

    Valdeir Jr

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  2. Pois é, que cena embasbacante!! Uma perfeição!!!
    Gostei, mesmo espremida entre casais que não sacaram nada do filme e de uma plateia que ria (?????) em determinadas passagens.
    Cinemão no domingão da nisso!:)Bernardo teve que sentar na fila de trás, lá do outro lado... Fiquei sem cobertor de orelha para fofocar ao longo da sessão...

    Beijos,

    Lu.

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  3. Ai, tô louca prá ver! Ah, se não fossem os filmes, eu já teria morrido à mingua!...rs...
    Desde que pus os olhos no cartaz desse filme, já vi que tinha algum babado denso, dramático e psicológico que irira me interessar. Mas, não vi ainda, não posso dar meus pitacos. Verei atrasada, como sempre, no sofá da minha casa, sem os acompanhantes que eu não pedi a Deus, que costumamos encontrar nos cinemas...rs...

    beijos,

    Patty

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  4. Para minha amiga Luciana: andei lendo seu blog e digo que vc esta escrevendo cada vez melhor!!

    P.S. Agora que já peguei o figurino, confirmo que sairei com Thoroh e colegas em carro alegórico da Unidos do Peruche. É a 1a escola a desfilar na 6a feira, pelo Carnaval de São Paulo. Veja na tv, por volta das 23h!

    beijos,
    Elisabeth

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    Criar
    Questionamento que não cessa
    A Inspiração vem do sofrimento?
    A grande Arte é para todos?

    O gozo
    vem do Sublime;
    Vislumbre da felicidade alcançada
    Festa dos sentidos
    Isso todo mundo pode sentir
    mesmo que por alguns segundos
    (qual foi a última vez?)

    Então a Arte é para todos
    quando é de alma para alma
    transpondo barreiras
    rótulos
    fazendo chorar e chorando
    ao mesmo tempo.

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