Pati-amargosa





Custava ter seios pequenos e serenidade grande? Meteu uma faca no peito e morreu. Ao menos partiu despeitada, a ingrata. Sim, ingrata. Nem pra me mandar uma mensagem no zap.

Vamo levar o pequi, moça?

A pergunta tirou a mulher de seus pensamentos embaçados sobre a morte da vizinha. Era domingo, dia de feira. Ela gostava de passear entre as barracas de tudo um pouco. Galinhas vivas ou desmembradas, linguiças, queijos, meninos remelentos, milho na espiga, quiabo, gueroba, melancias. 

Aos domingos não ia à missa, preferia a feira. Ritual de comunhão com a intensidade da vida das gentes da roça, uma conexão ancestral com a terra.

Gostava de ver o balé dos feirantes que tomavam a rua inteira, encarapitados em barracas de teto plástico até o fim da ladeira. O caos da lida para ela era contemplação. Um mantra que acalmava os sentimentos perplexos daquele domingo.

A vizinha sempre fora amuada, mas ela insistia na amizade. Levava bolo, tocava a campainha sem ser convidada. Provocava a conversa. Por quê não me chamou…

Fique à vontade, moça, tem muita novidade.

A novidade é que a vizinha havia se matado com uma faca no peito na tarde de sábado. Jamais imaginou que ela, tão recatada, escolheria uma partida dramática. De repente um enxame de curiosos tomou a frente das casas, o carro da polícia. 

Ninguém se importava com a vizinha discreta e solitária. Agora essa cambada vem fazer caras e bocas no portão.

Parece que foi abandonada por um noivo no altar.
Viciada em drogas, por isso vestia mangas compridas todos os dias.
Engravidou solteira e o pai expulsou de casa.
Perdeu o filho ainda bebê.

Os motivos para o infortúnio fervilhavam enquanto o pessoal do rabecão fazia o trabalho moribundo. 

A única amiga da vizinha se irritou com o falatório leviano e se escondeu dentro de seu quarto. Esperou o furdunço dar lugar ao marasmo rotineiro da vila.

Pamonha fresquinha, olha a pamonha, olha o curau!

A ladainha do vendedor lhe assustou. Se deu conta que andava pela feira como se anda num deserto. 

Encarou um guri que se esbaldava com o sorvete de máquina do casal de velhinhos. A boca azul-anilina. Os lábios da vizinha também estariam azuis ou roxos? Os olhos abertos com o espanto da própria morte? Quanto tempo com a faca fincada entre os peitos fartos até ser encontrada pela tia, a única parente conhecida a lhe fazer visita vez ou outra naquele casebre de fundos. 

Ela nunca experimentou, não tinha dado uma chance para vir na feira comigo. Insisti tanto… Quem sabe tirava as ideias fixas da cabeça. Ocupava com cebola, mamão, geleia de goiaba e doce de cidra raladinho. 

A gente comia biscoito-de-queijo-frito-na-hora-com-café. Depois, tomava sorvete americano verde-esperança, vermelho-afeto. Comprava um pernil e fazia um almoço de domingo só para nós duas...

A senhorita não gostou de nada?

Não, não era nada daquilo. Desceu a ladeira com as mãos vazias e os olhos fartos de lágrimas.


A gueroba (nome científico Syagrus oleracea) é  uma palmeira do bioma Cerrado, mas pode ser encontrada em outras regiões do país. É também conhecida como gueiroba, gariroba, gairoba, jaguaroba, catolé, pati, pati-amargosa, coqueiro-amargoso e palmito-amargoso. A origem do nome provém da palavra gwarai-rob, da língua tupi, e significa o indivíduo amargo. A palmeira pode ser encontrada nos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, São Paulo, Paraná, Espírito Santo e Rio de Janeiro e no Distrito Federal.

Comentários

  1. Que triste. Super bom, Lu, adorei. Achei ótimo.

    Ana Cecília Tavares

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  2. Primaaaa, como vc descreveu bem a feira de domingo.... E outra , a mulher relembrando da vizinha e do que poderia ter feito com ela para que ela ocupasse a sua mente e desistisse do suicídio!!! Sua mente é muito fértil. Gostei!

    Jôsy Militão

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  3. Sabawona! Eu te vejo, te aprecio, te celebro!

    Márcia Godinho

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  4. Parabéns, Luciana. Triste, comovente. Tem melancolia, mas também pitadinhas de um humor que procede. E assim vamos nos equilibrando na escrita uma com a outra.

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