Feitiço






Perderam a conta de quantos apartamentos haviam visitado naqueles dois meses. Era uma decisão difícil escolher o lar ideal quando se tem dinheiro contado, suado e economizado por tanto tempo.

Cada imóvel que conheciam lhes dava a certeza de que o ser humano é de fato sui generis. As reformas escalafobéticas se sucediam a cada porta que se abria. Num deles, havia uma banheira de hidromassagem postada no meio da sala de estar. Há que se receber os amigos para um banho turco, pois, sim.

Em outro três quartos, o banheiro da suíte havia se fundido ao próprio quarto do casal. O amor tudo suporta, inclusive assistir ao amado com prisão de ventre sentado no trono, vá vendo.

Cozinhas americanas, ladrilhos portugueses, louças francesas. Granitos tumulares por toda a habitação. Papéis de parede florais dourados para um eterno último baile da Ilha Fiscal.

Esse vocês vão adorar, acreditem, tentava encorajar o diligente corretor, que estava perdendo a esperança de receber sua gorda comissão. As visitas resultavam numa sequência de frustrações até que, numa noite chuvosa, de fog pouco comum na cidade, o vendedor lhes apresentou a unidade do quinto andar do bloco I, no setor noroeste.

Não era a melhor hora para se conhecer um apartamento, bem verdade. Justo no crepuscular 31 de outubro? As sombras costumam camuflar a verdadeira natureza das pessoas e dos lugares, mas estavam impacientes com aquela procura infrutífera. Aceitaram a missão para quase se arrependerem, tamanho o engarrafamento que pegaram.

A dona da residência abriu a porta. Era uma mulher de idade indizível. Não havia também nenhum traço facial que fosse distinto o bastante para lhe distinguir de outras mulheres no meio da rua. Não era simpática nem antipática. Estava sozinha e deslizou adentro, acompanhando o trio de interessados.

A esposa adorou a disposição do imóvel: sala ampla, cozinha idem. As janelas lhe pareceram grandes o bastante para permitir a entrada de luz natural. A vista era praticamente livre, dava para o gramado com muitas mangueiras, das quais só se vislumbravam as copas.

Cômodo por cômodo ia crescendo o encantamento no casal. Vistoriaram os dois quartos e quando rumavam para o último, a proprietária, quase sempre inexpressiva (como se não estivesse sequer propensa a fazer negócio), se apressou em dizer: meu filho está dormindo aí dentro, vocês não podem entrar.

O casal se desculpou e aproveitou para demonstrar todo o entusiasmo em relação ao apê. Gostaria de visitá-lo durante o dia, se não fosse atrapalhar…Não, não tem problema. Combinaram, então, outro encontro para a manhã do dia seguinte.

Vou trazer mamãe para opinar também, falou a esposa para o marido enquanto desciam pelo elevador.

Por volta das nove, a moça, acompanhada da mãe, tocou a campainha, atendida prontamente pela senhora lânguida de idade indefinida. A dupla de mulheres escaneou cada canto da residência e aprovou o que viu, com as bênçãos do sol a incidir seus raios alegres nas paredes e objetos.

Chegaram ao cômodo desconhecido, que permanecia cerrado. Esperaram que a dona abrisse a porta e assim que ela o fez, um cheiro ácido lhes invadiu as narinas. As paredes escuras, pintadas de um vermelho profundo, estavam tomadas por imagens de índios, orixás e santos de vários tamanhos. O quarto era um relicário, um altar no qual um berço vazio ocupava o lugar de destaque, equidistante das prateleiras.

A mãe da jovem começou a se sentir um pouco tonta e, arfante, deixou o quarto, arrastando a filha pelo braço. Minha filha, essa dona é muito esquisita e esse quarto é estranho. Não estou gostando nada disso, vamos embora, murmurou.

A filha, no entanto, havia caído de amores pelo apartamento e, apesar de achar aquela decoração carregada, não ficou particularmente impressionada, pois já havia visto tantas casas amalucadas até ali.

Entretanto, a curiosidade pelo paradeiro do tal menino ainda precisava ser sanada. E o seu filhinho, onde está agora, perguntou, ressabiada, a jovem. Ele está no berço, você não viu? Ele adora brincar com o seu macaquinho azul. Avaré é um bebê muito tranquilo, não gosta de ser incomodado. O quarto é o seu mundo.

Aterrorizada, mas tentando manter as aparências, a moça se despediu da proprietária, prometendo ligar mais tarde, e saiu de fininho ao encontro da mãe, postada em agonia no hall de entrada.

Mamãe do céu, esse filho não existe, morreu ou sei lá o quê aconteceu com ele. Ela falava aos trambolhões dentro do elevador. Eu te disse, eu te disse que não havia gostado nada disso. Vamos embora, essa mulher é louca, Cristiana. Esquece esse apartamento, minha filha.

Só que ela não esquecia. Procurou um padre. E se benzêssemos o espaço? Procurou a Comunhão Espírita: e se déssemos um passe? Pensou em procurar um pajé (o menininho tinha nome indígena, né?). Talvez fosse o caso de pedir orientação num terreiro de Candomblé para fazer um defumador, um banho de cheiro, um trabalho depurador qualquer.

O marido acompanhava a obsessão da esposa com muita desconfiança e, ainda que também houvesse se enamorado do apartamento, que cabia no orçamento reservado, não estava a fim de viver num lar marcado por histórias trágicas, seja lá quais fossem.

Depois de ler sobre as mais variadas correntes dogmáticas, Cristiana ouviu do padre que celebrou seu casamento: sim, posso abençoar seu novo lar. Da minha parte, não acredito em fantasmas e muito menos que o lugar seja amaldiçoado. Tenho para mim que, nesse caso, o grande problema seja a autossugestão. Como assim, padre Alberto?

Pense comigo: imagina você sozinha à noite, Allan viaja muito a trabalho, certo? Ao menos uma vez por mês. Então, você solitária numa noite de chuva deitada no sofá. O tal bebê não vai pensar em você, mas você vai começar a pensar nele. É inevitável. Em breve, vai vê-lo pelos cantos, dentro do tal quarto, no banheiro. Não importa se vai mudar a decoração ou a cor das paredes.

De olhos arregalados, Cristiana concordou com a reflexão e, entristecida, se deu por vencida. Desistiria da aquisição, tranquilizaria o marido aflito. Ela apenas não sabia que Avoré estaria a lhe esperar, abraçado ao macaquinho azul, no próximo apartamento, a vida toda. O bichinho se afeiçoara a moça, tadinho.



Comentários

  1. Wow! É de arrepiar. Pareceu que estava na adolescência lendo histórias de medo! Sempre inspirada!

    Márcia Godinho

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  2. Eu, fraquinha, fiquei com medo...

    Carmem Cecília

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  3. Bom e assustador!

    Débora Cronemberger

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  4. Oi, vizinha! Muito bom, ficou igualzinha. Voltei no tempo não sei quantos anos!
    Macabra e divertida.

    Davi Antunes

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  5. Noooossa, terror, hein!

    Marisa Andrade

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  6. Uau, sinistro mesmo. Olha, este foi super Lygia Fagundes Telles!

    Bianca Duqueviz.

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  7. A história, do jeito que está, está ótima! Mas, eu gostaria de saber o que se passa na cabeça de uma mulher para acreditar que tem um neném dormindo num bercinho vazio.
    Acho que essa história se encaixa no gênero de flash-fiction, né? Se bem que não houve uma virada no final, e, sim, uma revelação!!!
    Legal, Luciana!!!

    Evelyn Ferris

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  8. Esse foi diferente de todos, gostei! Vai ter continuação?

    Renata Assumpção

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  9. Muito bom!

    Cecília Pereira

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  10. Aplausos!

    André Luiz Alvez

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  11. Que terror! Deu até arrepio!

    Cynthia Chayb

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  12. Bem legal.
    Nós com nossas paixões e apegos.
    Quando nos agarramos num objeto de desejo, é mesmo difícil o desvencilhar. Somente quando algo ou alguém nos faz relacioná-lo a outro, simbolicamente mais intenso e de sinal trocado, é que soltamos, partindo noutra direção. O que fica é uma fissura no coração, pois a nostalgia de que aquele poderia ter sido o objeto ideal.
    Bj
    Gregório

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  13. Muito bom, sinistro.

    Clarice Veras

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  14. Kkkkkkk cruzes!!!! Adorei, Lu!
    Já vi um filme, aí! 😉

    Isabel Frantz

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  15. Simplesmente sensacional, xará! Parabéns! Literatura de qualidade!

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  16. Uauuuuuu!! Show! Adorei! Forte!!! O que a solidão e nossas dores "constroem" em nossas mentes... Meio aterrorizante mesmo! Show, Lu

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  17. EXCELENTE, Lu! Você vai tensionando, envolvendo...e ficamos loucos pra saber se tem um bebê-defunto no tal quarto do apartamento da senhora de idade indizível. Maravilhoso. Pra ganhar concurso!

    Luciana Barreto

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  18. Que terror!!!! me fez recordar do”o exorcista”, , sai do cinema de volta pra casa, morrendo de medo, nem olhava pra trás, vai que a Linda Blair dá aquela girada de cabeça 😳😳

    Cynthia Chayb

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  19. Você é demais!

    Lilian Alvisi

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  20. Adoreeei ! Final muito bom 👍🏻👍🏻👍🏻
    Tb lembrei da Lygia Fagundes Telles .
    No começo eu já estava querendo colocar frutas para os passarinhos no parapeito da janela da sala.
    No final , MEDO
    Kkk

    Karla Liparizzi

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  21. Maravilhoso!

    Bianca Duqueviz

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  22. A cada parágrafo lido …imaginando, as cenas, os cenários e as personagens do conto…muito bom mesmo ….rsrs 👏👏👏

    Adriano Schulc

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