Que las hay, las hay






Não eram nem oito da manhã e elas já estavam tentando contato. 

Saiu para a caminhada com a alegria de um feriado que fosse só dela. Sempre curtiu mais às bruxas do que as fadas. Definitivamente, nunca foi princesa. E se gosta do balé é por causa do Cisne Negro, não da Bela Adormecida. 

No meio da caminhada, uma velha esquisita agarrou o braço dela e começou a falar coisas incompreensíveis. 

Ela estava com o fone de ouvidos cantarolando e levou alguns segundos para perceber que talvez aquela senhora quisesse apenas lhe mostrar o pássaro que ciscava a grama logo à frente. Puxou um dos fones e notou que a idosa permanecia ininteligível. 

Não levou mais do que outros segundos para a velhota se agarrar ao braço dela com valentia. Assustada, ela se desvencilhou, e seguiu no passo vigoroso do exercício matinal, sem olhar para trás, porém um pouco culpada: se a idosa fosse como o seu antigo vizinho, cujo cérebro foi tomado pelo Alzheimer e se perdia com frequência?

Afugentou os pensamentos e prosseguiu resoluta até que um cara meio Marvin Gaye, meio um drink no inferno, atravessou a calçada com duas garrafas plásticas cheias de água ou pinga. 

- Bom-dia, ele disse.
- Bom-dia, ela retornou no automático. 
- Hoje é meu aniversário! 

Ela diminui o ritmo e retrucou:

- Puxa, legal! Fazer aniversário no Dia das Bruxas é bacana. 

Não ficou para ver se a informação que deu surtiu algum efeito no Bob Marley das ruas e se sentiu novamente incomodada com a sua indiferença. Imediatamente lembrou-se da canção de Joan Osborne que tanto gosta: 

What if God was one of us?
Just a slob like one of us
Just a stranger on the bus
Tryin' to make his way home?

Voltou para casa, tomou uma ducha sem tirar o refrão da cabeça. Pegou sua mochila, entrou no carro e partiu para sua viagem solitária rumo à capital do estado vizinho. Ouviria rádio, não Spotify dessa vez. Não estava a fim de escolher nada hoje, nesse dia leve e bonito de liberdade. Mal chegara ao fim da Asa Sul e a estação começa a tocar os acordes tão familiares de One of Us. 

Arrepia dos pés à cabeça. Faz um sinal da cruz, deixa rolar umas lágrimas e se rende. Tá bom, tá bom, já entendi.


Comentários

  1. Maravilhoso e inebriante como sempre!!!

    Anna Gabis

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  2. eu gosto tanto!!!

    Bianca Duqueviz

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  3. Muito bom, você se supera.

    Renata Assumpção

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  4. Luciana, muito bom. Se você tiver oportunidade, dá uma lida no segundo conto do livro O sol na cabeça, que emprestei para o Bernardo. Chama-se Espiral. Acho que tem a ver com esse seu sentimento.

    Davi Antunes

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